sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Memorando

eu não me importo que ardam, que queimem, que sangrem. ou que envergonhem, que confundam, que me mostrem a carne pulsante. não faço caso se elas aconteceram, ou se são distorções dos meus desejos e medos, se vêm em cores invertidas, se vêm sem cores, se vêm em fragmentos, se me fazem ficar nauseada, se me fazem sorrir, se sorrindo eu choro, se me tomam e me levam para outro lugar, um Agora que não é Aqui. um Agora despresente. Não ligo se nelas o momento fugaz ficou aprisionado como numa fotografia feliz, mesmo sabendo que talvez nem tudo seja sempre tão feliz como quando devolvido a nós, depois de digeridos. às vezes precisamos de tempo para apreender as experiências e dar um significado para elas, e nisso me refiro a comprar biscoitos caseiros de chocolate numa lojinha não muito distante. o que quero dizer é que não me importo com a qualidade das lembranças: a memória é uma espécie de negativo, e costuma inverter as cores e os sabores das nossas vivências; o que era doce fica azedo, o que era bruto vira modelável. o que importa é que, sem elas, não há porquê. não há quem. não existe Eu. "I need my memories. They are my documents".

terça-feira, 11 de novembro de 2008

dosares

e eu que
queria os ares
que queria os
mares sem
par.
queria querer
sem fim o que
não sei
se quereria
querer:
o verbo estar.
para além das
lentes
arranhadas de
ser
que limitam o
jardim dos
olhos-par,
para além do
obscuro fundo
da minh'alma
canhestra:
- a morte cala
a morte
d'alma,
a morte d'alma
grita
a morte.


e eu que
queria o
infinito total
da letra que
marca a sorte,
sem querer
quis
o final
e o desejo, enfim,
fez norte:
minha letra
crua
sem fio pra corte.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Escrever é preciso, viver não é preciso.





sábado, 20 de setembro de 2008

Pra Falar a Verdade

desculpa o drama; nem sinto isso, mas acho que fica mais bonito assim.

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

as coisas que mudam

o que gira em mim? um giro raso de todo o sacolejo do não-sei-que-eu. de repente as coisas-gigantes se tornaram tão pequeninas, e a falta de sentido permanente dói de nostalgia. nós tal dia? só nostalgia.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

vicissitudes neuróticas

conflito permanente (com o desejo):
penso tão longe e faço tão perto.

terça-feira, 9 de setembro de 2008

somos humanos; e para isso não há cura.
NÃO HÁ CURA onde não há
doença.

é só vida.

domingo, 17 de agosto de 2008

gozo de morte

o desabar de uma espera. a frustração da exposição. o estômago virado, como um aviso latente, antes ignorado às custas. o jorro alvo e o furtacor, o jorro da vida e o jorro da morte, lado a lado, em mim. me desfizeste. me feriste de modo inapreensível. que lástima, que medo. jamais recuperarei o que foi perdido num instante tão simples, porém necessário. tua glória, minha deturpação. gemes a vida em um sopro, e eu que não percebo que essa vida, assim brisada em teu hálito, se esvai. esvaímos, almas e fisiológico. um abismo se abriu, e todo o mar que surgiu do encontro não foi suficiente para nos aproximar. assim, navegamos incautos, perdidos num doce não-saber do fim. acabou, sinto dizer. o que resta agora são mais alguns dias de trocas inférteis, de carícias contidas, de obscuro, porém não obstinado, tentar.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

caco de espelho

Trechos de "Do Desejo", Hilda Hilst

Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?

domingo, 3 de agosto de 2008

a vitória da tripa sobre a palavra.

"He who makes a beast of himself
gets rid of the pain of being a man."

Eu tenho uma confissão a fazer. Uma urgente confissão. Eu te traí. Inúmeras vezes. Em pensamento. De certo pensas: é só? Sim, é só. E ao mesmo tempo muito, muito mais do que possas sonhar, e muito mais grave do que possas imaginar. Trair em pensamento é o mais imperdoável dos crimes de traição. Possui a face horrenda e deformada da verdade, pois no pensamento não se trai só em corpo, como no ato; se trai também a si mesmo. Eu me traí, e traí a pureza da tua alva semente: traí a alma, traí Deus. E me sinto impura, banhada em sangue putrefato. O sangue teu que escorria entre meus dentes não era impuro: era santo. A tua santidade alva e, portanto, aprisionadora e cruel. Tua inocência sádica. Minha imoralidade impudica e masoquista.


Eis a confissão do meu sacrilégio, o pensamento demoníaco de hoje à tarde: a atração irresistível que surgiu das mãos imundas da morte (essa face a um só tempo conturbada e plácida da vida), e que cuja lembrança, emanando dos meus cabelos como cheiro de fuligem, me põe a caneta na mão nesse tom de beata pecadora em casa santa. Mas ao contrário do que podes estar pensando agora, minhas mãos não estão trêmulas: elas, agora, mais do que nunca, possuem a firmeza da certeza de que não apenas a carne é fraca, mas também as idéias. Meu corpo me trai nestas idéias devassas: no mato sou instinto. E instinto é bicho no cio e cheiro ocre. É secreção pegajosa: mistura perturbadora de excremento, suor e sangue. É o despir-se da Cultura, despir-se de tudo que tu me és e me amas: é a regressão a tudo de mais perverso e, portanto, mais sincero que um homem pode ser. Bicho com fome, que mata. Bicho no cio, que fode. E ninguém acha isso feio, sujo, ou imoral.


Assim, como bicho, quis me oferecer a ele, o Senhor das Moscas, o senhor de todo o mal (senhor apenas por não sabê-lo: na ignorância reside o mais alto poder), com sua cabeça de porco infestada de moscas, com suas mãos empestadas do sangue de matar porcos. Ignorante em sua crueldade e, nem por isso, de algum modo inocente. Batem o martelo na mesa com a mesma falta de empatia com que ele crava a faca no coração do animal; da estreita boca suína sai um grunhido: “culpado!”. Mas eu que me sinto criminosa. Nunca pensei me sentir tão excitada com a morte.


Mas, sendo a morte uma face da vida (a um só tempo conturbada e plácida), que erro há em excitar-se com ela? Por acaso podemos repreender quem se excita diante a vida? Duas faces do mesmo, e a moeda continua tendo o mesmo valor, esteja para cima cara ou coroa.


Pois eu quis sentir o mais obsceno dos sonhos, quis sentir as mãos sebosas de gordura de porco e morte sobre o meu sexo, e cheguei a visualizar o coito-bicho, quase como se copulasse com um cavalo assassino e sorridente. A sujeira. O excremento. E o gozo só-por-alívio amarelado, putrefato, tão diferente do teu, que é alvo e que sorvo como se tua alma fosse. Ele não tem alma, o Senhor das Moscas, e por isso seu sêmen é amarelo e pus. Imaginei o orifício dele explodindo como putrefata pústula, escorrendo pena apocalíptica e doentia sobre toda a patética espécie humana que, aqui, represento eu. O fracasso da Cultura. A impotência dos vocábulos frente ao instinto. A vitória da tripa sobre a palavra.

sábado, 19 de julho de 2008

Carta para o Inconcluso

Não sei se, depois de todo esse tempo, ainda sinto raiva de ti. As coisas mudaram. A gente mesmo queria que elas mudassem, e elas, finalmente, mudaram. As linhas se seguiram e se distanciaram em perspectiva. A gente sempre soube que precisava viver outras coisas, mas não sabia aonde isso chegaria. Que nos afastaria tanto. Que nos afastaria tanto que então permaneceríamos juntos lá no infinito, de um modo que nunca teríamos imaginado. Não sei aplicar julgamentos a essas coisas, bom? Ruim? Acho que esse é o tipo de coisa que não faz diferença. O que importa é a ordem dos acontecimentos e a perpetuação das coisas. Desde que tudo aconteceu, ou melhor, desaconteceu, olhei pra trás e comecei a pensar que existem dois tipos de relacionamento (dentre os de amor mais habituais): os que são tão bem vividos que se esgotam em possibilidades de sentimento, e os que mesmo marcando a carne com a mão, marcando a alma com palavras, batendo com as palavras e acariciando com os dentes, nunca se esgota o sentimento. É algo de uma matéria vaga que escapa às mãos. Não é apreensível, não é observável e, principalmente, não é nomeável. Meus estudos me marcam muito, como tu sabes, e por isso acredito que o que não é nomeável é o mais difícil. Já gastei tantas folhas de papel, tanta tinta, tanto tempo na frente de uma tela iluminada, espancando o teclado com os únicos dois dedos com que sei digitar e parece que ainda não alcancei o ponto catártico de toda essa coisa. Não consigo pôr em palavras, e isso me angustia de um modo brutal. Mas me angustia só quando penso nisso, o que não costuma acontecer, aliás, quase nunca acontece. O que me trouxe aqui hoje foi a impossibilidade de afastar um broto de pensamento: estava pegando livros na biblioteca e, sem entender porquê, peguei um de um autor que tu gostas. Não sei o que aquele livro fazia entre Proust e Ítalo Calvino, acredito que não pertença àquele local. E esse deslocamento, essa falta de sentido, me chamou atenção. Saltou aos olhos e, sem pensar muito, retirei ele. Eu sabia que não era uma boa idéia, mas o que posso fazer? Às vezes as pessoas necessitam espetar o dedo com agulhas para ver se ainda possuem sangue sob a pele. E não tive surpresa alguma ao ver que, sim, eu ainda tenho sangue, que não deixei todo o líquido embriagante escorrer. Por que seguro ele em mim ainda?
Pois eu estava em casa à noite, entre a Clarice e a Virginia, tentando me embebedar da vida ao avesso, quando o tal do livro começou a me olhar. Eu sabia o que ia acontecer se eu o abrisse, eu sou meio impulsiva, ou eu agarro as coisas e as sugo, ou eu abro mão de um modo aparentemente muito simples. Tu sabes. Pois eu suguei. Suguei de um modo que nunca imaginei sugar, me senti agarrada a um naco do passado, me senti reavivando pedaços de seres mortos. Mas senti, e esse foi o principal. O livro me trouxe toda a necessidade de falar contigo, e o faço através destas letras. Não existem palavras para nós. Existem essas coisas emaranhadas, tecidas com a mão pesada de algo bruto e mortal. Esse algo é o amor. Foi amor, eu sei. E isso me tranqüiliza e me perturba, como o amor pode ser tão cruel? O amor que mata, o amor que nos matou de modo impiedoso, que nos executou de forma triste, deixando uns farelos de idéias que não se encaixam em lugar algum. E que vamos sempre carregar, porque não pertencem a nada que tenha forma ou seja acolhedor. O amor é cruel? Acredito que não se possa julgar desse modo. Bom? Ruim? Não faz diferença. O que importa é que o nosso amor sempre foi um objeto pontiagudo. Daqueles que usamos para nos cortar e ter certeza de que ainda estamos vivos, quando tudo em volta parece não fazer mais sentido.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

obra-prima do tempo

Quebrando espelhos
deixo restos reversos e rezo,
raso de todo o fervor de tempos antigos.
Me pego tocando as marcas
truculentas, antes deleitosas
e doces
hoje amarguradas cascas
que revestem meu corpo,
invólucro do vácuo
que se fez minha estada aqui.
Oco e uniforme, sem saliências
ou solturas.
Me pego vago entre os cômodos da casa
e me acomodo nessa forma incômoda
tocando o ventre grosso,
e as partes do corpo hoje disforme.
As pontas dos pêlos me doem.
As pontas dos dedos me moem.
Os fios brancos me remoem
o passado de grave gozo.
Brigo com a memória
e teimo em afastar os fantasmas em sopros
que afugentam apenas a poeira da velha mobília,
sem desintoxicar meus poros rotos.
Me apego aos ossos em farelos
Negando tacitamente que para as ruas lá fora,
Não passo de naftalina e resto.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

dos relacionamentos febris

"- Silêncio! Ouve!... foi a coisa mais pura da minha vida... quando eu penso... como explicar? Um rio... um rio de esperma... e eu dentro do rio... braços... bocas... eu ia descendo o rio de esperma feito um balé aquático... homens passando... gemendo... que coisa maravilhosa ser puta! Toda mulher brasileira devia ser louca e prostituta!... há uma hora em que a gente começa a morrer... aí, tem de sair... eu saí... será que foi verdade? Sonhos? Foi a época que eu mais te amei..."

do livro "Eu sei que vou te amar".

segunda-feira, 9 de junho de 2008

vasta podridão

estou distante e etérea:
seca,
cinzenta e bruta.
sou verme e andanças
no cérebro de quem lê.
sou câncer pestilento
nas vísceras de quem sabe.

segunda-feira, 2 de junho de 2008

Sangria

Dizem que para curar certos tipos de mal se faz sangria. Extrai-se o sangue ruim, contaminado, para que se fique livre do que adoece. Sangria dói, dizem. Principalmente pela impossibilidade
de se controlar. Vai sair um pouquinho só? Não se sabe. A necessidade dita a quantidade, mas a quantidade às vezes é absurda, e o veneno, ao sair, pode esvair a pessoa em sangue. Esvaziar. O que aconteceria então? Morte? Cura? Ninguém sabe. Os ditos corajosos estão por aí, se escondendo atrás de alegorias. Mas também ouvi falar que há uma crise até entre os acostumados com essa prática. Parece que nos últimos tempos o couro endureceu, e que está cada vez mais difícil fazer um sulco eficiente. Resultado: os que ainda sabem o que se deve fazer, estão morrendo de seu próprio sangue envenenado. Aos poucos.

sábado, 24 de maio de 2008

boneca de pano

procurando no quintal
aquela coisa feia que eu atirei fora e nem queira,
o brinquedo velho
que hoje me faz tanta falta.

translucidez

o frio cortando o rosto,
cortando o resto de conhaque
no copo transparente.
minha translucidez me fere,
golpeia o copo e o peito,
e me desfaço em cacos de vidro
e caleidoscópios no chão.
fragilidade da pele
em contato com o vento áspero
que me atravessa mas
não me leva a lugar algum.
paralítica. estanque.
dura, muda, dócil.
permissiva.
translucidez que não me permite
o sono justo.
além do nítido, dentro do meu copo
enxergo o muro por contornos
como eu mesma escolhi
me sabendo então passiva
e cega.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

novas experiências

Eu ando num exercício de ouvir essa minha casca, não ver ela só como uma ferramenta, mas como um meio de expressão, criador de desejos, de demandas. o corpo como um meio produtivo em si, e não só um instrumento subordinado a mente. o que esse corpo fala, que não fala a mente? e por que separar corpo de mente, rejeitando o corpo? sem corpo não há subjetividade; o corpo é subjetividade, é algo próprio, tem suas reações que muitas vezes se adiantam ao pensamento. ouvir o que meu corpo pede, o que ele deseja, como ele reclama. pausar o automatismo racionalista que só preza a via mente-corpo, que vê o corpo como um serviçal do pensamento. proponho descontruir essas relações: o corpo está vivo! o corpo produz! o corpo clama, ouça o corpo! ouça o desejo dos seus dedos, as demandas dos seus pés: correr, pular, escorregar? ouça o ranger dos seus ossos cansados, sinta a necessidade de tocar diferentes superfícies: e veja isso tudo como um desejo a ser realizado, um desejo pulsante, que se dá na superfície de contato e que se produz num encontro entre mãos, entre vibrações, entre arrepios. permita ao corpo desejar livremente, sem o domínio da mente. permita ao corpo produzir, sem necessidade de racionalização de significados. permita o corpo: seja!

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Atravessamentos

O amor que nunca sobra;
Sempre resta.
O amor que atravessando,
Nos atravessa
E que atravessando, atravesso.

O amor sem frente
Nem verso;
Massa fluida disforme
Orvalho que escorre
E une a minha mão ao leito do rio.

Me arrasto atravessado,
Deixando contornos em pedras.
Rolando pedras, rolo verso.
E todo o amor que não me cabe,
Atravesso.

terça-feira, 6 de maio de 2008

ossificado

mordo o osso do ócio
mas é o ócio que cria
osso
armadura
estuque
estátua
estagnação.

o osso é criativo,
mas o ócio não.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

ambulante

me rendo ao movimento caótico
do meu epicentro;
minha espinha dorsal é bailarina.

me rendo aos ventos que me sopram longe;
abandonei minha nau à sua sorte,
e hoje navego todos os oceanos.

me rendo à busca sem fim,
pulo telhados e não durmo mais de uma noite
na mesma praça.

me rendo a tudo que me falta e me contorna;
e faço desse bolso furado a coragem
e as pernas para correr o mundo.

vendo as pedras que sonham sozinhas no mesmo lugar.

"Eu perdi o meu medo
o meu medo
o meu medo da chuva,
pois a chuva voltando pra terra
traz coisas do ar.

Aprendi o segredo
o segredo,
o segredo da vida
vendo as pedras que choram sozinhas
no mesmo lugar"

Raulzim

Olha meu copo!

Olha meu copo!
Olha! Olha fundo e dentro
porque tudo, tudo se respinga
se contorna, se contorce
e acerta em cheio.

Olha meu copo!
Equilibrando no estômago um mar bravio
abraçando o intangível,
o improvável,
a liquidez.

Olha meu copo!
olha meus olhos dentro do copo
e esse sorriso bobo
turvo, seco e molhado
como o vinho.

Olha meu copo!
E todas as gotas que fazem natação
que escorrem em redemoinho
que se chacoalham na minha mão
e terminam sempre no chão.

Olha meu copo!
Me adivinha lá dentro
por trás do gosto amargo,
do olhar quebrado,
do contratempo.

Olha meu copo!
E te encontra sereno ao fundo
furado
escorrendo pela ausência
de matéria plástica.

Olha meu copo!
E tenta sentir a torrente
de tudo que transborda
morno
quando me entorno dentro dele.

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Besta é Tu!

por que não viver?
não viver esse mundo
por que não viver?
se não há outro mundo!
por que não viver?
não viver outro mundo?

e pra ter outro mundo
é preci-necessário
viver!

(novos baianos)

segunda-feira, 28 de abril de 2008

Eu só sei que é preciso paixão.

E eu estou apaixonada pela gota de chuva na lente do meu óculos, pelas pedras dentro do meu sapato vermelho, pelo céu que nunca vejo, pelo balanço do meu corpo, e também pelo do meu coração. Eu me apaixonei por tudo que me escapou, por tudo que me casou, e por tudo que me brota. Me sinto VerdeViva. Me sinto portas e possibilidades, me sinto parte de tudo que me sorriem por tudo que me desvendam, me mostro crua. estou apaixonada: crua, nua, exposta, queimando ao sol, fazendo arder todas as idéias e sensações que me transbordam em torno do sentimento de estar viva e no lugar certo, entregue e Toda.

domingo, 27 de abril de 2008

minha carne é de carnaval, meu coração é igual.

felicidade que não cabe em mim. meu Mais cresceu, me transbordou. só quero embriagar o mundo, quero me jogar, quero meu corpo solto das cordas. tirei minha máscara, e agora eu danço por todo salão com meus próprios pés. meu confete chove, e eu me sinto toda amores e carnaval.

Mr. Potato Head

as palavras me sabotam. não sei o que dizer quando me sinto livre, e fluida, e fértil. brotam de mim todas as possibilidades que se atravessaram no meu caminho, e as portas que eu fechei foram só ilusões referentes ao fim, porque agora tudo se transformou, e tudo desabrocha lentamente, tão lentamente que até consigo saborear os fragmentos doces de tudo que acontece em mim (dentro e fora). eu flori. e se eu reflito a luz que depositam em mim, é porque eu olhei pro escuro da beira do abismo e decidi não pular. eu quero é pular n'água morna que me invade, quero amortecer a queda com calor. quero acalentar as mãos, e me perder nessa dança. antes, eu era fragmentos desconexos, nacos roídos de vazio; agora eu sou o encaixe de tudo que me ocorre, testando o gosto da fruta com a ponta da língua, para saber se me ocorre morder. se antes eu era lágrima seca, agora sou chuva, e minha fertilidade respinga em todos que me sorriem. estou embriagando com sorrisos e com tudo de brincadeira que se fez no meu corpo, no momento em que eu me permiti fluir a água que eu invariavelmente sou. hoje talvez eu saiba que minha terra firme só se faz onde me permitem escoar meu líquido, sem medo.

Cheshire Cat


eu vi as estrelas pelos traços que os galhos do cinamomo faziam no céu negro. eu senti as luzes através de todos os caminhos-possibilidades de uma vida, e eu realmente senti que meu momento é esse balanço lento, rodopiante, embriagante, que prende minhas idéias aos sons, aos sinais, às coincidências que agora sinto como pequenos caminhos a serem traçados, como os galhos da árvore que me protege, e que desembocam em estrelas diferentes, em sonhos azuis. e a lua me sorriu, cheshire cat balançava sua cauda, e o mundo corria num rodopio lento e protegido. Alice não saberia viver esse momento. Eu estou além de mim mesma, eu atravessei a porta, comi o cogumelo, e eu só sei crescer, crescer... a casa é tão pequena, abandonei meu casulo. Abandono meu corpo num suspiro, e minha alma voa e dança, e eu transformo meus anseios em cantos, minha vida em dança. Meu movimento livre, me livro das amarras, nunca estive tão longe. Experimento atalhos, retiro pedras, eu flutuo, eu sobrevôo a ferida aberta, eu abro as portas, eu deixo entrar, e tem algo dentro de mim que se agiganta, meu Mais, minha embriaguez de estar vivendo, sentindo, como nunca.

nenhum talento para o lado prático da vida.

não tenho talento
pro lado prático da vida.
pros números, pras construções, pras letras.
para todos os moldes.
não tenho o talento
do encaixe perfeito
da rapidez desconjunta
do atropelamento surdo.
não tenho talento!
nem tempo
para não viver os ventos
e não sentir os corpos.
meu tempo eu gasto
em flagelos e sorrisos.
e vida pulsante.
Me escorro pelo mundo
sem talento para tudo
que tem forma mínima
e não alça vôo.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Náusea

Todo o peso que eu carrego é todo o sangue que não escorre entre as minhas pernas. Me pesa o mundo, me pesa mudo o ventre. Arrebento num grito tudo que me amarra as entranhas, e me sopra no ouvido com vozes demoníacas o medo de me continuar, de desinterromper o interrompido em outra estação. Perco o chão numa vertigem, mas já perdi a mim mesma em outras cidades. Me resta perder o que carrego, traçar um plano de fuga, escapar de mim mesma, me esconder do que se esconde dentro de mim.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Companhia

Bem-vinda, minha amiga, a esta noite
Não esperava te ver tão cedo
Ou tão tarde.
Puxe uma cadeira, sente-se.
Me ofereça um cigarro e toda a desordem possível.
Agora que te vejo, não me sinto mais tão inquieta
Quando apenas sentia tua presença, tremia.
Mas os tempos já são outros, velha amiga
E hoje tua presença ainda me é incômoda
Porém cordial
Quase como duas velhas senhoras
Se encontrando para lamentar seus mortos
E deixar transparecer pelo silêncio duplo
O inferno da angústia
E a resignação diante das cartas que tiramos
Sem ver futuro.
Não te culpo por me acompanhar a tanto tempo
Creio que te mantive presa aos meus medos
E delírios
Por todos esses anos. Essa longa estrada.
E te temi e desejei tão intensamente...
Não creio que foste uma paixão; creio que
Sempre esperei isso de ti: aceitação.
Me olha nos olhos e me vês
Gasta
Como gasto está o solado de tuas botas
Com as quais peregrinou por tantas vidas
Fazendo visitas insólitas.
Creio que te repudiam quando fracos
Que te apedrejam quando fortes
Mas eu não – abraço todo o desgaste
Que me trazes
Pois reconheço em ti a única amiga
Leal
Que já tive. Nunca me abandonaste;
No teu presente infernal reside a única
Certeza
da minha trajetória.

domingo, 23 de março de 2008

tormento onírico

Queria transportar todas as imagens que me perturbam
Os fantasmas que me rondam no escuro
De minhas idéias.
Queria expurgar tudo que me resta
De larvas e livros
Asfalto quente
Banco na beira do rio
Todo o teatro e o trago
Tudo que corre desesperadamente
Pelos olhos de dentro, ao passar pela vida de fora.
Queria dar adeus a tudo de valor que tenho –
Essas imagens oníricas
De todas as vidas que não tive
De todo o suor que se faz mar, que se faz ar
Que se fez sombra
Sobre meus dias de hoje, e que me persegue
Com fragmentos de prédios, de praças,
De tudo que me cruza pelas ruas conhecidas
Nuvens de toda fumaça que deixei no mundo
Enquanto meus pulmões alçavam vôo no concreto.

sobre ser mulher e líquida II

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se água
desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.



Hilda Hilst.

sábado, 15 de março de 2008

Palavreiro

Desculpa.
Cinzeiros transbordam enquanto eu tento... Te digo, sim, te digo! Te falo sem pronunciar uma só palavra. As palavras doem, mesmo sem significar Absolutamente nada. Sons perdidos por aí. Nossa comunicação se dá na fração de segundos entre uma palavra e outra. São esses segundos silenciosos que permitem que nossos sentimentos rompam essa barreira de ar construída pelas palavras e toquem a alma do outro. Aí sim, somos compreendidos. As melhores conversas acontecem quando estamos em silêncio. Compreende? Compreende que nada aqui tem um objetivo ou significado? E que, ainda assim, eu tento lhe falar? Escuta! Escuta, porque eu preciso... preciso que me escutes. Só. Mas preciso que me escutes tanto, tanto, que eu nem precise falar. O que vem ao meu peito não tem palavras. Palavras não bastam, palavras são vãs, e mesmo assim tento lhe dizer tudo, tudo isso e tudo mais, tudo e mais um pouco: tento lhe dizer nada. Tento, tento, juro que tento! De repente não percebes, mas tento com todo meu espírito: estou sangrando. Sangrando de tanto tentar, e tudo me dói, é tanto, tanto esforço... Mas sei que não é em vão. Nada é em vão. Palavras são vãs, mas eu vou além delas, elas nos afastam, elas nos travam, elas nos limitam a tão, tão pouco... Como se todo esse mosaico de sentimentos inomináveis, colagens de sensações e antagonismos, de visões e intuições, toda essa riqueza de tudo que nos constitui pudesse se resumir a uma convenção pobre, uma convenção simplista. Palavras são uma ofensa aos sentimentos! Palavras são uma ofensa a um artista... ou a um sensível. Palavras ofendem, e eu tento falar, tento... tento tanto! Mas acho que desaprendestes a ouvir de outro modo. A sentir, sem que precisem lhe descrever tudo, tudo... O que não pode ser interpretado, analisado, fichado, resumido a uma folha de revista, é valorizado? O que não cabe em palavras não é levado a sério, embora seja tudo de mais sério e verdadeiro que possa existir vindo de um ser humano. Acabamos vivendo nesse mundo de mal entendidos, de mal entendidos e de excessos de “bem entendidos”, abusos de explicações, tudo é explicado, tudo é repetido, tudo é decorado. Não há mais espaço para criar, pois existem moldes, ensinados em palavras, moldes passados de boca em boca, sem saliva, sem sangue ou cuspe. Palavras limitadoras, que criam deficientes visuais com visão, surdos com ótimos ouvidos e tímpanos, mudos com voz, paralíticos de expressão... Eu preciso, preciso lhe falar. Eu sinto... sinto tanto. E as palavras me cercam, me golpeiam, me enjaulam. Me sinto amarrada, presa, distante, vazia. Existem mais de duzentas mil palavras na nossa língua. E nenhuma compreensão. Compreende? Ninguém compreende a palavra, porque a palavra é ordem. Criada para ordenar sentimentos, limitando tudo que poderíamos ser e sentir e criar, se não houvesse a necessidade de analisar, catalogar, expor. Exponho, a partir daqui, tudo que sinto e preciso, preciso urgentemente dizer. Que o silêncio fale por mim, que nossa fração de segundos fale muito mais alto do que o som de qualquer palavra que possa tentar nos enquadrar. A partir de agora, eis aqui tudo, tudo que sempre quis dizer. Não espero que compreendas; espero apenas que sintas.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Langor

Os dias passavam, luz e caravelas, um mar de gosto amargo. Café preto e forte, numa tentativa vã de reanimar o corpo, já que a alma já cedia aos desgastes da maré. Nunca entendera o que fazia, porquê fazia, e se fazia de verdade. A vida era um balanço lento, confundido com tranqüilidade, mas era mais de uma coisa acinzentada e vaga, sem uma espinha dorsal. Uma vida inteira gelatinosa, rija por fora, negativamente fluida por dentro. Perdia-se entre devaneios em letras, em bares ou canções, em televisões luminosas, quem entendia a televisão? E todos adoravam. Exploração visual, costumava chorar por pena dos seus olhos, que viam em todos os cantos da cidade o excesso de tudo aquilo que nunca teve dentro. Caleidoscópios, carnavais, floreiras. Azul ciano, luz de neon, tijolinhos, sapatos de boneca, flores, flores, flores. Onde as cores se depositavam apenas na superfície, tudo se tornava cinza, metálico e gélido por dentro. Vivia uma quarta-feira de cinzas eterna, que a cercava por todos os lados. E talvez nem se importasse muito, que diferença faria se desse importância? O mundo seguiria um bloco de concreto afundando lentamente no oceano. Protegida por uma capa preta, como essas de gabardine, caminhava na chuva, sem senti-la. Nada penetrava nela. E nada saia dela também. Todo o caos que existe dentro não tinha permissão para sair, vagava por entre as bordas de sua persona com indiferença lastimável. Poderia ter sido uma explosão de tudo o mais que não se sabe, mas não foi. Com a alma vedada por tudo aquilo que pensava que era ou deveria ser, morreu antes mesmo de ter nascido, como um bloco inócuo de cimento e cotidiano.
Escrever esgota todos os problemas e a vida
de dentro.

Esperma no papel.

do narcisismo absurdo e sincero

felicidade passada:

Fui dormir muito feliz ontem. Me sentindo amada. Poderia morrer naquele momento, desconhecendo a verdade, a ansiedade, os medos e os fatos. Poderia morrer feliz, com a esperança da perpetuação de todos os amores, com o sentimento de completude que se espalha e toma conta de todo o universo. O mundo é bom, e por ser tão amada, posso morrer - não preciso de ninguém mais.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Jards Macalé

Estou Cansado e você também.
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais.
Me desculpe a paz que roubei,
E o futuro esperado que não dei.
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo.
Não quero ficar dando Adeus às coisas passando
Eu quero é passar com elas
E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro...
E a marca de um abraço no seu corpo.
Não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não.
Lamentando o Eterno Movimento dos barcos.

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Acidente?

Heliodora
Virgem da Lapa
Espera Feliz
Jacinto Olhos d'Água

Entre Folhas
Ferros, Palma, Caldas
Vazante

Passos
Pai Pedro Abre Campo
Fervedouro Descoberto
Tiros, Tombos, Planura
Águas Vermelhas
Dores de Campos



Acidente, documentário de Cao Guimarães e Pablo Lobato.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

do sangue

Espetava o dedo incessantemente na agulha, mas nunca com intensidade suficiente. A ponta áspera bailava entre as curvas do desenho de sua pele, rompendo levemente a camada mais superficial, depósito de tudo que se desfez do corpo. Pele moribunda unida ao corpo, sem vida, opaca, quase uma mortalha que encobre tudo que pulsa, e assim se desprende, se despede, se esfarela. Rompendo o envoltório mais barato, entrelaçado, sentia arrepios, medos, excitação. A costura surgia quase como uma memória de algum passado que não viveu, mas que ainda assim era seu, era de suas mulheres, de sua história. Quase como se aquela agulha tivesse passado toda uma eternidade costurando parentescos, tragédias, amores, bordando flores e cruzes por toda uma estrada com um início e um fim tão desconhecidos quanto os mistérios que encobrem os laços de sangue. Com a ponta da agulha desenhou na pele uma espiral, quase como ondas num lago de reflexos duvidosos, e um sentimento de conforto a invadiu. Certas coisas não se pode negar, o sangue era uma delas. Todos os erros, angústias e prazeres de tempos remotos corriam em suas veias. Sabores, medos, paixões, ambições, preconceitos. Poderia ser uma coisa qualquer, sem intenção nenhuma de estar aqui. Mas ao atribuir uma história ao líquido grosso que se arrastava pelo seu corpo, tornou-se algo além de solidão: tornou-se parte. Ao segurar a agulha com força, um sorriso bobo invadiu seu rosto, e a nostalgia de toda uma vida eterna lhe ardeu. Apertou a agulha com força contra o dedo, rompendo tudo que a prendia a um fim, e ao alcançar esse feito, escorreu-lhe a força de uma vida por entre os sulcos de sua mão. Nunca mais estaria só.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

sobre ser mulher e líquida.

Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha,
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel.

Não saber se se ausenta ou se te espera
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.


Hilda Hilst.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Angústia

De repente, um buraco vazio a frente. Procurando em volta não encontrava nada em que pudesse se segurar: o espaço estava tomado de idéias, de palavras, de coisas médias e conflitantes. Fumaça. Pedaços de cortiça tomados por traças. Farelos dos ossos que se decompunham. Azedume de toda uma vida visceral regurgitada. Deixava fósforos queimarem lentamente, uma caixa, duas... finda a luz e em canto algum dessa morada criou-se paz ou alguma ilusão parecida. Tic tac, vertigem, medo. Um passo e um abismo infinito, toda a atração da queda e o inferno lá embaixo, queimando lentamente tudo que permite uma vida ridícula. Lá embaixo, tudo de mais vital pulsava. Perturbação, coração palpitante. Cair no abismo... De repente, não mais do que isso, juntou todo seu pó, todos seus vícios e sua indiferença, se agarrou com toda a força que tinha a um pedaço de papel, e assim conseguiu se enganar por mais algumas semanas. Sedada.

redenção

Me reconciliei comigo mesma.

De passos em passos, largos e flutuantes, me despeço dos velhos baús de pesos cordiais. Atravesso a porta: Adeus a tudo aquilo que fiz. Jogo todos os erros num navio que naufraga;
permito que meus medos afundem com as minhas culpas, para assim me reencontrar comigo mesma. Atiro flores no caixão, me reconcilio com meu presente carregando versos que não dizem nada, que não ouvem nada, que de nada me servem. Quando quero afogar tudo que está fora de mim, prendo a respiração e pulo do telhado da casa: redenção.

Efemeridade.

Todo momento de desgraça ou de prazer não passa de uma eternidade vivida numa ampulheta com final ao alcance dos dedos. Na passagem repentina de uma centena de nuvens, moldamos e remoldamos algo que não nos pertence: ser. Na estabilidade desencontramos a mobilidade a qual viver nos remete: condição humana do movimento incessante. De nada adianta tentar aprisionar bons momentos, como se a felicidade fosse algo palpável, ou se o prazer pudesse durar mais do que um orgasmo. Ou se desesperar e angustiar como se a dor fosse infinita. Nada é. Tudo está. Estar: é ser em um dado momento. Multiplicando seres, numa constante mudança, algo que só alcança alguma expressão em algo plástico, ou cênico. Palavras são estáticas, e todo movimento que tento tirar delas se resume a tentativas vãs de alguém que visa autenticidade, mas que não passa de um qualquer sentimental aprisionado à ordem.

fim de um caso qualquer

Silencio o grito.
Porque tudo se desfez tão leve
ruído, tempestade
Um redemoinho dentro do que sou
Tudo se foi.
Porque as coisas sempre vão
Nada há de ficar
O tempo leva tudo que pode
Levou o que fui
O que fomos
O que seria
Levou meus sonhos
Meus medos
E trouxe novos.

"deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa..."

Jasão: "Você é viagem sem volta, Joana. Agora eu vou contar para você, sem rancor, sem sacanagem porque é que eu tinha que te abandonar. Você tem uma ânsia que me esgota. Ninguém pode viver tendo que se empenhar até o limite de suas forças, sempre, para fazer qualquer coisa. É no amor, é no trabalho, é na conversa, você me exigia inteiro, intenso, pra tudo, caralho... Tinha que olhar pro céu pra dar bom dia. Tinha que incendiar a cada abraço, tinha que calcular cada pequeno detalhe, cada gesto, cada passo. Que um cafezinho pode ser veneno e um copo d'agua, copo de aguarrás.
Só que Joana, a vida também é jogo, é samba, é piada, é risada, é paz. Pra você não Joana, você é fogo. Está sempre atiçando essa fogueira, está sempre debruçada pro fundo do poço, na quina da ribanceira, sempre na véspera do fim do mundo. Pra você, não há pausa, nada é lento. Pra você é tudo hoje, agora e já. Tudo é tudo, não há esquecimento, não há descanso, nem morte há. Pra você não existe dia santo e cada segundo parece eterno.
Foi por isso mesmo, que te amei tanto, porque, Joana, você é um inferno."


da peça Gota d'Água.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Langor

Os dias passavam, luz e caravelas, um mar de gosto amargo. Café preto e forte, numa tentativa vã de reanimar o corpo, já que a alma já cedia aos desgastes da maré. Nunca entendera o que fazia, porquê fazia, e se fazia de verdade. A vida era um balanço lento, confundido com tranqüilidade, mas era mais de uma coisa acinzentada e vaga, sem uma espinha dorsal. Uma vida inteira gelatinosa, rija por fora, negativamente fluida por dentro. Perdia-se entre devaneios em letras, em bares ou canções, em televisões luminosas, quem entendia a televisão? E todos adoravam. Exploração visual, costumava chorar por pena dos seus olhos, que viam em todos os cantos da cidade o excesso de tudo aquilo que nunca teve dentro. Caleidoscópios, carnavais, floreiras. Azul ciano, luz de neon, tijolinhos, sapatos de boneca, flores, flores, flores. Onde as cores se depositavam apenas na superfície, tudo se tornava cinza, metálico e gélido por dentro. Vivia uma quarta-feira de cinzas eterna, que a cercava por todos os lados. E talvez nem se importasse muito, que diferença faria se desse importância? O mundo seguiria um bloco de concreto afundando lentamente no oceano. Protegida por uma capa preta, como essas de gabardine, caminhava na chuva, sem senti-la. Nada penetrava nela. E nada saia dela também. Todo o caos que existe dentro não tinha permissão para sair, vagava por entre as bordas de sua persona com indiferença lastimável. Poderia ter sido uma explosão de tudo o mais que não se sabe, mas não foi. Com a alma vedada por tudo aquilo que pensava que era ou deveria ser, morreu antes mesmo de ter nascido, como um bloco inócuo de cimento e cotidiano.

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Desculpa.
Cinzeiros transbordam enquanto eu tento... Te digo, sim, te digo! Te falo sem pronunciar uma só palavra. As palavras doem, mesmo sem significar Absolutamente nada. Sons perdidos por aí. Nossa comunicação se dá na fração de segundos entre uma palavra e outra. São esses segundos silenciosos que permitem que nossos sentimentos rompam essa barreira de ar construída pelas palavras e toquem a alma do outro. Aí sim, somos compreendidos. As melhores conversas acontecem quando estamos em silêncio. Compreende? Compreende que nada aqui tem um objetivo ou significado? E que, ainda assim, eu tento lhe falar? Escuta! Escuta, porque eu preciso... preciso que me escutes. Só. Mas preciso que me escutes tanto, tanto, que eu nem precise falar. O que vem ao meu peito não tem palavras. Palavras não bastam, palavras são vãs, e mesmo assim tento lhe dizer tudo, tudo isso e tudo mais, tudo e mais um pouco: tento lhe dizer nada. Tento, tento, juro que tento! De repente não percebes, mas tento com todo meu espírito: estou sangrando. Sangrando de tanto tentar, e tudo me dói, é tanto, tanto esforço... Mas sei que não é em vão. Nada é em vão. Palavras são vãs, mas eu vou além delas, elas nos afastam, elas nos travam, elas nos limitam a tão, tão pouco... Como se todo esse mosaico de sentimentos inomináveis, colagens de sensações e antagonismos, de visões e intuições, toda essa riqueza de tudo que nos constitui pudesse se resumir a uma convenção pobre, uma convenção simplista. Palavras são uma ofensa aos sentimentos! Palavras são uma ofensa a um artista... ou a um sensível. Palavras ofendem, e eu tento falar, tento... tento tanto! Mas acho que desaprendestes a ouvir de outro modo. A sentir, sem que precisem lhe descrever tudo, tudo... O que não pode ser interpretado, analisado, fichado, resumido a uma folha de revista, é valorizado? O que não cabe em palavras não é levado a sério, embora seja tudo de mais sério e verdadeiro que possa existir vindo de um ser humano. Acabamos vivendo nesse mundo de mal entendidos, de mal entendidos e de excessos de “bem entendidos”, abusos de explicações, tudo é explicado, tudo é repetido, tudo é decorado. Não há mais espaço para criar, pois existem moldes, ensinados em palavras, moldes passados de boca em boca, sem saliva, sem sangue ou cuspe. Palavras limitadoras, que criam deficientes visuais com visão, surdos com ótimos ouvidos e tímpanos, mudos com voz, paralíticos de expressão... Eu preciso, preciso lhe falar. Eu sinto... sinto tanto. E as palavras me cercam, me golpeiam, me enjaulam. Me sinto amarrada, presa, distante, vazia. Existem mais de duzentas mil palavras na nossa língua. E nenhuma compreensão. Compreende? Ninguém compreende a palavra, porque a palavra é ordem. Criada para ordenar sentimentos, limitando tudo que poderíamos ser e sentir e criar, se não houvesse a necessidade de analisar, catalogar, expor. Exponho, a partir daqui, tudo que sinto e preciso, preciso urgentemente dizer. Que o silêncio fale por mim, que nossa fração de segundos fale muito mais alto do que o som de qualquer palavra que possa tentar nos enquadrar. A partir de agora, eis aqui tudo, tudo que sempre quis dizer. Não espero que compreendas; espero apenas que sintas.