sexta-feira, 28 de novembro de 2008
Memorando
terça-feira, 11 de novembro de 2008
dosares
queria os ares
que queria os
mares sem
par.
queria querer
sem fim o que
não sei
se quereria
querer:
o verbo estar.
para além das
lentes
arranhadas de
ser
que limitam o
jardim dos
olhos-par,
para além do
obscuro fundo
da minh'alma
canhestra:
- a morte cala
a morte
d'alma,
a morte d'alma
grita
a morte.
e eu que
queria o
infinito total
da letra que
marca a sorte,
sem querer
quis
o final
e o desejo, enfim,
fez norte:
minha letra
crua
sem fio pra corte.
sexta-feira, 10 de outubro de 2008
sábado, 20 de setembro de 2008
sexta-feira, 19 de setembro de 2008
as coisas que mudam
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
terça-feira, 9 de setembro de 2008
domingo, 17 de agosto de 2008
gozo de morte
sexta-feira, 15 de agosto de 2008
caco de espelho
Por que não posso
Pontilhar de inocência e poesia
Ossos, sangue, carne, o agora
E tudo isso em nós que se fará disforme?
domingo, 3 de agosto de 2008
a vitória da tripa sobre a palavra.
Eis a confissão do meu sacrilégio, o pensamento demoníaco de hoje à tarde: a atração irresistível que surgiu das mãos imundas da morte (essa face a um só tempo conturbada e plácida da vida), e que cuja lembrança, emanando dos meus cabelos como cheiro de fuligem, me põe a caneta na mão nesse tom de beata pecadora em casa santa. Mas ao contrário do que podes estar pensando agora, minhas mãos não estão trêmulas: elas, agora, mais do que nunca, possuem a firmeza da certeza de que não apenas a carne é fraca, mas também as idéias. Meu corpo me trai nestas idéias devassas: no mato sou instinto. E instinto é bicho no cio e cheiro ocre. É secreção pegajosa: mistura perturbadora de excremento, suor e sangue. É o despir-se da Cultura, despir-se de tudo que tu me és e me amas: é a regressão a tudo de mais perverso e, portanto, mais sincero que um homem pode ser. Bicho com fome, que mata. Bicho no cio, que fode. E ninguém acha isso feio, sujo, ou imoral.
Assim, como bicho, quis me oferecer a ele, o Senhor das Moscas, o senhor de todo o mal (senhor apenas por não sabê-lo: na ignorância reside o mais alto poder), com sua cabeça de porco infestada de moscas, com suas mãos empestadas do sangue de matar porcos. Ignorante em sua crueldade e, nem por isso, de algum modo inocente. Batem o martelo na mesa com a mesma falta de empatia com que ele crava a faca no coração do animal; da estreita boca suína sai um grunhido: “culpado!”. Mas eu que me sinto criminosa. Nunca pensei me sentir tão excitada com a morte.
Mas, sendo a morte uma face da vida (a um só tempo conturbada e plácida), que erro há em excitar-se com ela? Por acaso podemos repreender quem se excita diante a vida? Duas faces do mesmo, e a moeda continua tendo o mesmo valor, esteja para cima cara ou coroa.
Pois eu quis sentir o mais obsceno dos sonhos, quis sentir as mãos sebosas de gordura de porco e morte sobre o meu sexo, e cheguei a visualizar o coito-bicho, quase como se copulasse com um cavalo assassino e sorridente. A sujeira. O excremento. E o gozo só-por-alívio amarelado, putrefato, tão diferente do teu, que é alvo e que sorvo como se tua alma fosse. Ele não tem alma, o Senhor das Moscas, e por isso seu sêmen é amarelo e pus. Imaginei o orifício dele explodindo como putrefata pústula, escorrendo pena apocalíptica e doentia sobre toda a patética espécie humana que, aqui, represento eu. O fracasso da Cultura. A impotência dos vocábulos frente ao instinto. A vitória da tripa sobre a palavra.
sábado, 19 de julho de 2008
Carta para o Inconcluso
segunda-feira, 23 de junho de 2008
obra-prima do tempo
deixo restos reversos e rezo,
raso de todo o fervor de tempos antigos.
Me pego tocando as marcas
truculentas, antes deleitosas
e doces
hoje amarguradas cascas
que revestem meu corpo,
invólucro do vácuo
que se fez minha estada aqui.
Oco e uniforme, sem saliências
ou solturas.
Me pego vago entre os cômodos da casa
e me acomodo nessa forma incômoda
tocando o ventre grosso,
e as partes do corpo hoje disforme.
As pontas dos pêlos me doem.
As pontas dos dedos me moem.
Os fios brancos me remoem
o passado de grave gozo.
Brigo com a memória
e teimo em afastar os fantasmas em sopros
que afugentam apenas a poeira da velha mobília,
sem desintoxicar meus poros rotos.
Me apego aos ossos em farelos
Negando tacitamente que para as ruas lá fora,
Não passo de naftalina e resto.
quinta-feira, 19 de junho de 2008
dos relacionamentos febris
do livro "Eu sei que vou te amar".
segunda-feira, 9 de junho de 2008
vasta podridão
seca,
cinzenta e bruta.
sou verme e andanças
no cérebro de quem lê.
sou câncer pestilento
nas vísceras de quem sabe.
segunda-feira, 2 de junho de 2008
Sangria
de se controlar. Vai sair um pouquinho só? Não se sabe. A necessidade dita a quantidade, mas a quantidade às vezes é absurda, e o veneno, ao sair, pode esvair a pessoa em sangue. Esvaziar. O que aconteceria então? Morte? Cura? Ninguém sabe. Os ditos corajosos estão por aí, se escondendo atrás de alegorias. Mas também ouvi falar que há uma crise até entre os acostumados com essa prática. Parece que nos últimos tempos o couro endureceu, e que está cada vez mais difícil fazer um sulco eficiente. Resultado: os que ainda sabem o que se deve fazer, estão morrendo de seu próprio sangue envenenado. Aos poucos.
sábado, 24 de maio de 2008
boneca de pano
aquela coisa feia que eu atirei fora e nem queira,
o brinquedo velho
que hoje me faz tanta falta.
translucidez
cortando o resto de conhaque
no copo transparente.
minha translucidez me fere,
golpeia o copo e o peito,
e me desfaço em cacos de vidro
e caleidoscópios no chão.
fragilidade da pele
em contato com o vento áspero
que me atravessa mas
não me leva a lugar algum.
paralítica. estanque.
dura, muda, dócil.
permissiva.
translucidez que não me permite
o sono justo.
além do nítido, dentro do meu copo
enxergo o muro por contornos
como eu mesma escolhi
me sabendo então passiva
e cega.
sexta-feira, 9 de maio de 2008
novas experiências
quarta-feira, 7 de maio de 2008
Atravessamentos
Sempre resta.
O amor que atravessando,
Nos atravessa
E que atravessando, atravesso.
O amor sem frente
Nem verso;
Massa fluida disforme
Orvalho que escorre
E une a minha mão ao leito do rio.
Me arrasto atravessado,
Deixando contornos em pedras.
Rolando pedras, rolo verso.
E todo o amor que não me cabe,
Atravesso.
terça-feira, 6 de maio de 2008
ossificado
mas é o ócio que cria
osso
armadura
estuque
estátua
estagnação.
o osso é criativo,
mas o ócio não.
segunda-feira, 5 de maio de 2008
ambulante
do meu epicentro;
minha espinha dorsal é bailarina.
me rendo aos ventos que me sopram longe;
abandonei minha nau à sua sorte,
e hoje navego todos os oceanos.
me rendo à busca sem fim,
pulo telhados e não durmo mais de uma noite
na mesma praça.
me rendo a tudo que me falta e me contorna;
e faço desse bolso furado a coragem
e as pernas para correr o mundo.
vendo as pedras que sonham sozinhas no mesmo lugar.
o meu medo
o meu medo da chuva,
pois a chuva voltando pra terra
traz coisas do ar.
Aprendi o segredo
o segredo,
o segredo da vida
vendo as pedras que choram sozinhas
no mesmo lugar"
Raulzim
Olha meu copo!
Olha! Olha fundo e dentro
porque tudo, tudo se respinga
se contorna, se contorce
e acerta em cheio.
Olha meu copo!
Equilibrando no estômago um mar bravio
abraçando o intangível,
o improvável,
a liquidez.
Olha meu copo!
olha meus olhos dentro do copo
e esse sorriso bobo
turvo, seco e molhado
como o vinho.
Olha meu copo!
E todas as gotas que fazem natação
que escorrem em redemoinho
que se chacoalham na minha mão
e terminam sempre no chão.
Olha meu copo!
Me adivinha lá dentro
por trás do gosto amargo,
do olhar quebrado,
do contratempo.
Olha meu copo!
E te encontra sereno ao fundo
furado
escorrendo pela ausência
de matéria plástica.
Olha meu copo!
E tenta sentir a torrente
de tudo que transborda
morno
quando me entorno dentro dele.
quarta-feira, 30 de abril de 2008
Besta é Tu!
não viver esse mundo
por que não viver?
se não há outro mundo!
por que não viver?
não viver outro mundo?
e pra ter outro mundo
é preci-necessário
viver!
(novos baianos)
segunda-feira, 28 de abril de 2008
Eu só sei que é preciso paixão.
domingo, 27 de abril de 2008
minha carne é de carnaval, meu coração é igual.
Mr. Potato Head
Cheshire Cat
eu vi as estrelas pelos traços que os galhos do cinamomo faziam no céu negro. eu senti as luzes através de todos os caminhos-possibilidades de uma vida, e eu realmente senti que meu momento é esse balanço lento, rodopiante, embriagante, que prende minhas idéias aos sons, aos sinais, às coincidências que agora sinto como pequenos caminhos a serem traçados, como os galhos da árvore que me protege, e que desembocam em estrelas diferentes, em sonhos azuis. e a lua me sorriu, cheshire cat balançava sua cauda, e o mundo corria num rodopio lento e protegido. Alice não saberia viver esse momento. Eu estou além de mim mesma, eu atravessei a porta, comi o cogumelo, e eu só sei crescer, crescer... a casa é tão pequena, abandonei meu casulo. Abandono meu corpo num suspiro, e minha alma voa e dança, e eu transformo meus anseios em cantos, minha vida em dança. Meu movimento livre, me livro das amarras, nunca estive tão longe. Experimento atalhos, retiro pedras, eu flutuo, eu sobrevôo a ferida aberta, eu abro as portas, eu deixo entrar, e tem algo dentro de mim que se agiganta, meu Mais, minha embriaguez de estar vivendo, sentindo, como nunca.
nenhum talento para o lado prático da vida.
pro lado prático da vida.
pros números, pras construções, pras letras.
para todos os moldes.
não tenho o talento
do encaixe perfeito
da rapidez desconjunta
do atropelamento surdo.
não tenho talento!
nem tempo
para não viver os ventos
e não sentir os corpos.
meu tempo eu gasto
em flagelos e sorrisos.
e vida pulsante.
Me escorro pelo mundo
sem talento para tudo
que tem forma mínima
e não alça vôo.
quarta-feira, 16 de abril de 2008
Náusea
segunda-feira, 24 de março de 2008
Companhia
Não esperava te ver tão cedo
Ou tão tarde.
Puxe uma cadeira, sente-se.
Me ofereça um cigarro e toda a desordem possível.
Agora que te vejo, não me sinto mais tão inquieta
Quando apenas sentia tua presença, tremia.
Mas os tempos já são outros, velha amiga
E hoje tua presença ainda me é incômoda
Porém cordial
Quase como duas velhas senhoras
Se encontrando para lamentar seus mortos
E deixar transparecer pelo silêncio duplo
O inferno da angústia
E a resignação diante das cartas que tiramos
Sem ver futuro.
Não te culpo por me acompanhar a tanto tempo
Creio que te mantive presa aos meus medos
E delírios
Por todos esses anos. Essa longa estrada.
E te temi e desejei tão intensamente...
Não creio que foste uma paixão; creio que
Sempre esperei isso de ti: aceitação.
Me olha nos olhos e me vês
Gasta
Como gasto está o solado de tuas botas
Com as quais peregrinou por tantas vidas
Fazendo visitas insólitas.
Creio que te repudiam quando fracos
Que te apedrejam quando fortes
Mas eu não – abraço todo o desgaste
Que me trazes
Pois reconheço em ti a única amiga
Leal
Que já tive. Nunca me abandonaste;
No teu presente infernal reside a única
Certeza
da minha trajetória.
domingo, 23 de março de 2008
tormento onírico
Os fantasmas que me rondam no escuro
De minhas idéias.
Queria expurgar tudo que me resta
De larvas e livros
Asfalto quente
Banco na beira do rio
Todo o teatro e o trago
Tudo que corre desesperadamente
Pelos olhos de dentro, ao passar pela vida de fora.
Queria dar adeus a tudo de valor que tenho –
Essas imagens oníricas
De todas as vidas que não tive
De todo o suor que se faz mar, que se faz ar
Que se fez sombra
Sobre meus dias de hoje, e que me persegue
Com fragmentos de prédios, de praças,
De tudo que me cruza pelas ruas conhecidas
Nuvens de toda fumaça que deixei no mundo
Enquanto meus pulmões alçavam vôo no concreto.
sobre ser mulher e líquida II
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se água
desejasse
Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.
Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta
Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.
Hilda Hilst.
sábado, 15 de março de 2008
Palavreiro
sexta-feira, 14 de março de 2008
Langor
do narcisismo absurdo e sincero
Fui dormir muito feliz ontem. Me sentindo amada. Poderia morrer naquele momento, desconhecendo a verdade, a ansiedade, os medos e os fatos. Poderia morrer feliz, com a esperança da perpetuação de todos os amores, com o sentimento de completude que se espalha e toma conta de todo o universo. O mundo é bom, e por ser tão amada, posso morrer - não preciso de ninguém mais.
segunda-feira, 3 de março de 2008
Jards Macalé
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais.
Me desculpe a paz que roubei,
E o futuro esperado que não dei.
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo.
Não quero ficar dando Adeus às coisas passando
Eu quero é passar com elas
E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro...
E a marca de um abraço no seu corpo.
Não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não.
Lamentando o Eterno Movimento dos barcos.
quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008
Acidente?
Virgem da Lapa
Espera Feliz
Jacinto Olhos d'Água
Entre Folhas
Ferros, Palma, Caldas
Vazante
Passos
Pai Pedro Abre Campo
Fervedouro Descoberto
Tiros, Tombos, Planura
Águas Vermelhas
Dores de Campos
Acidente, documentário de Cao Guimarães e Pablo Lobato.
quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008
do sangue
domingo, 24 de fevereiro de 2008
sobre ser mulher e líquida.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha,
Objeto de amor, atenta e bela.
Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)
Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel.
Não saber se se ausenta ou se te espera
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.
Hilda Hilst.
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008
Angústia
De repente, um buraco vazio a frente. Procurando em volta não encontrava nada em que pudesse se segurar: o espaço estava tomado de idéias, de palavras, de coisas médias e conflitantes. Fumaça. Pedaços de cortiça tomados por traças. Farelos dos ossos que se decompunham. Azedume de toda uma vida visceral regurgitada. Deixava fósforos queimarem lentamente, uma caixa, duas... finda a luz e em canto algum dessa morada criou-se paz ou alguma ilusão parecida. Tic tac, vertigem, medo. Um passo e um abismo infinito, toda a atração da queda e o inferno lá embaixo, queimando lentamente tudo que permite uma vida ridícula. Lá embaixo, tudo de mais vital pulsava. Perturbação, coração palpitante. Cair no abismo... De repente, não mais do que isso, juntou todo seu pó, todos seus vícios e sua indiferença, se agarrou com toda a força que tinha a um pedaço de papel, e assim conseguiu se enganar por mais algumas semanas. Sedada.
redenção
Me reconciliei comigo mesma.
De passos em passos, largos e flutuantes, me despeço dos velhos baús de pesos cordiais. Atravesso a porta: Adeus a tudo aquilo que fiz. Jogo todos os erros num navio que naufraga;
permito que meus medos afundem com as minhas culpas, para assim me reencontrar comigo mesma. Atiro flores no caixão, me reconcilio com meu presente carregando versos que não dizem nada, que não ouvem nada, que de nada me servem. Quando quero afogar tudo que está fora de mim, prendo a respiração e pulo do telhado da casa: redenção.
Efemeridade.
fim de um caso qualquer
Porque tudo se desfez tão leve
ruído, tempestade
Um redemoinho dentro do que sou
Tudo se foi.
Porque as coisas sempre vão
Nada há de ficar
O tempo leva tudo que pode
Levou o que fui
O que fomos
O que seria
Levou meus sonhos
Meus medos
E trouxe novos.
"deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa..."
Só que Joana, a vida também é jogo, é samba, é piada, é risada, é paz. Pra você não Joana, você é fogo. Está sempre atiçando essa fogueira, está sempre debruçada pro fundo do poço, na quina da ribanceira, sempre na véspera do fim do mundo. Pra você, não há pausa, nada é lento. Pra você é tudo hoje, agora e já. Tudo é tudo, não há esquecimento, não há descanso, nem morte há. Pra você não existe dia santo e cada segundo parece eterno.
Foi por isso mesmo, que te amei tanto, porque, Joana, você é um inferno."
da peça Gota d'Água.
quinta-feira, 17 de janeiro de 2008
Langor
Os dias passavam, luz e caravelas, um mar de gosto amargo. Café preto e forte, numa tentativa vã de reanimar o corpo, já que a alma já cedia aos desgastes da maré. Nunca entendera o que fazia, porquê fazia, e se fazia de verdade. A vida era um balanço lento, confundido com tranqüilidade, mas era mais de uma coisa acinzentada e vaga, sem uma espinha dorsal. Uma vida inteira gelatinosa, rija por fora, negativamente fluida por dentro. Perdia-se entre devaneios em letras, em bares ou canções, em televisões luminosas, quem entendia a televisão? E todos adoravam. Exploração visual, costumava chorar por pena dos seus olhos, que viam em todos os cantos da cidade o excesso de tudo aquilo que nunca teve dentro. Caleidoscópios, carnavais, floreiras. Azul ciano, luz de neon, tijolinhos, sapatos de boneca, flores, flores, flores. Onde as cores se depositavam apenas na superfície, tudo se tornava cinza, metálico e gélido por dentro. Vivia uma quarta-feira de cinzas eterna, que a cercava por todos os lados. E talvez nem se importasse muito, que diferença faria se desse importância? O mundo seguiria um bloco de concreto afundando lentamente no oceano. Protegida por uma capa preta, como essas de gabardine, caminhava na chuva, sem senti-la. Nada penetrava nela. E nada saia dela também. Todo o caos que existe dentro não tinha permissão para sair, vagava por entre as bordas de sua persona com indiferença lastimável. Poderia ter sido uma explosão de tudo o mais que não se sabe, mas não foi. Com a alma vedada por tudo aquilo que pensava que era ou deveria ser, morreu antes mesmo de ter nascido, como um bloco inócuo de cimento e cotidiano.
terça-feira, 15 de janeiro de 2008
Desculpa.
Cinzeiros transbordam enquanto eu tento... Te digo, sim, te digo! Te falo sem pronunciar uma só palavra. As palavras doem, mesmo sem significar Absolutamente nada. Sons perdidos por aí. Nossa comunicação se dá na fração de segundos entre uma palavra e outra. São esses segundos silenciosos que permitem que nossos sentimentos rompam essa barreira de ar construída pelas palavras e toquem a alma do outro. Aí sim, somos compreendidos. As melhores conversas acontecem quando estamos em silêncio. Compreende? Compreende que nada aqui tem um objetivo ou significado? E que, ainda assim, eu tento lhe falar? Escuta! Escuta, porque eu preciso... preciso que me escutes. Só. Mas preciso que me escutes tanto, tanto, que eu nem precise falar. O que vem ao meu peito não tem palavras. Palavras não bastam, palavras são vãs, e mesmo assim tento lhe dizer tudo, tudo isso e tudo mais, tudo e mais um pouco: tento lhe dizer nada. Tento, tento, juro que tento! De repente não percebes, mas tento com todo meu espírito: estou sangrando. Sangrando de tanto tentar, e tudo me dói, é tanto, tanto esforço... Mas sei que não é em vão. Nada é em vão. Palavras são vãs, mas eu vou além delas, elas nos afastam, elas nos travam, elas nos limitam a tão, tão pouco... Como se todo esse mosaico de sentimentos inomináveis, colagens de sensações e antagonismos, de visões e intuições, toda essa riqueza de tudo que nos constitui pudesse se resumir a uma convenção pobre, uma convenção simplista. Palavras são uma ofensa aos sentimentos! Palavras são uma ofensa a um artista... ou a um sensível. Palavras ofendem, e eu tento falar, tento... tento tanto! Mas acho que desaprendestes a ouvir de outro modo. A sentir, sem que precisem lhe descrever tudo, tudo... O que não pode ser interpretado, analisado, fichado, resumido a uma folha de revista, é valorizado? O que não cabe em palavras não é levado a sério, embora seja tudo de mais sério e verdadeiro que possa existir vindo de um ser humano. Acabamos vivendo nesse mundo de mal entendidos, de mal entendidos e de excessos de “bem entendidos”, abusos de explicações, tudo é explicado, tudo é repetido, tudo é decorado. Não há mais espaço para criar, pois existem moldes, ensinados em palavras, moldes passados de boca em boca, sem saliva, sem sangue ou cuspe. Palavras limitadoras, que criam deficientes visuais com visão, surdos com ótimos ouvidos e tímpanos, mudos com voz, paralíticos de expressão... Eu preciso, preciso lhe falar. Eu sinto... sinto tanto. E as palavras me cercam, me golpeiam, me enjaulam. Me sinto amarrada, presa, distante, vazia. Existem mais de duzentas mil palavras na nossa língua. E nenhuma compreensão. Compreende? Ninguém compreende a palavra, porque a palavra é ordem. Criada para ordenar sentimentos, limitando tudo que poderíamos ser e sentir e criar, se não houvesse a necessidade de analisar, catalogar, expor. Exponho, a partir daqui, tudo que sinto e preciso, preciso urgentemente dizer. Que o silêncio fale por mim, que nossa fração de segundos fale muito mais alto do que o som de qualquer palavra que possa tentar nos enquadrar. A partir de agora, eis aqui tudo, tudo que sempre quis dizer. Não espero que compreendas; espero apenas que sintas.