domingo, 3 de agosto de 2008

a vitória da tripa sobre a palavra.

"He who makes a beast of himself
gets rid of the pain of being a man."

Eu tenho uma confissão a fazer. Uma urgente confissão. Eu te traí. Inúmeras vezes. Em pensamento. De certo pensas: é só? Sim, é só. E ao mesmo tempo muito, muito mais do que possas sonhar, e muito mais grave do que possas imaginar. Trair em pensamento é o mais imperdoável dos crimes de traição. Possui a face horrenda e deformada da verdade, pois no pensamento não se trai só em corpo, como no ato; se trai também a si mesmo. Eu me traí, e traí a pureza da tua alva semente: traí a alma, traí Deus. E me sinto impura, banhada em sangue putrefato. O sangue teu que escorria entre meus dentes não era impuro: era santo. A tua santidade alva e, portanto, aprisionadora e cruel. Tua inocência sádica. Minha imoralidade impudica e masoquista.


Eis a confissão do meu sacrilégio, o pensamento demoníaco de hoje à tarde: a atração irresistível que surgiu das mãos imundas da morte (essa face a um só tempo conturbada e plácida da vida), e que cuja lembrança, emanando dos meus cabelos como cheiro de fuligem, me põe a caneta na mão nesse tom de beata pecadora em casa santa. Mas ao contrário do que podes estar pensando agora, minhas mãos não estão trêmulas: elas, agora, mais do que nunca, possuem a firmeza da certeza de que não apenas a carne é fraca, mas também as idéias. Meu corpo me trai nestas idéias devassas: no mato sou instinto. E instinto é bicho no cio e cheiro ocre. É secreção pegajosa: mistura perturbadora de excremento, suor e sangue. É o despir-se da Cultura, despir-se de tudo que tu me és e me amas: é a regressão a tudo de mais perverso e, portanto, mais sincero que um homem pode ser. Bicho com fome, que mata. Bicho no cio, que fode. E ninguém acha isso feio, sujo, ou imoral.


Assim, como bicho, quis me oferecer a ele, o Senhor das Moscas, o senhor de todo o mal (senhor apenas por não sabê-lo: na ignorância reside o mais alto poder), com sua cabeça de porco infestada de moscas, com suas mãos empestadas do sangue de matar porcos. Ignorante em sua crueldade e, nem por isso, de algum modo inocente. Batem o martelo na mesa com a mesma falta de empatia com que ele crava a faca no coração do animal; da estreita boca suína sai um grunhido: “culpado!”. Mas eu que me sinto criminosa. Nunca pensei me sentir tão excitada com a morte.


Mas, sendo a morte uma face da vida (a um só tempo conturbada e plácida), que erro há em excitar-se com ela? Por acaso podemos repreender quem se excita diante a vida? Duas faces do mesmo, e a moeda continua tendo o mesmo valor, esteja para cima cara ou coroa.


Pois eu quis sentir o mais obsceno dos sonhos, quis sentir as mãos sebosas de gordura de porco e morte sobre o meu sexo, e cheguei a visualizar o coito-bicho, quase como se copulasse com um cavalo assassino e sorridente. A sujeira. O excremento. E o gozo só-por-alívio amarelado, putrefato, tão diferente do teu, que é alvo e que sorvo como se tua alma fosse. Ele não tem alma, o Senhor das Moscas, e por isso seu sêmen é amarelo e pus. Imaginei o orifício dele explodindo como putrefata pústula, escorrendo pena apocalíptica e doentia sobre toda a patética espécie humana que, aqui, represento eu. O fracasso da Cultura. A impotência dos vocábulos frente ao instinto. A vitória da tripa sobre a palavra.

Um comentário:

melancolinhas disse...

texto visceralmente potente.
organicamente impulsivo.
excrementos soltos de caio f., apodrecendo a tudo o que fede a coisas eruditas...

encantou-me tuas descosturas
(por sorte não me faltaram tripas, apenas palavras.)