terça-feira, 21 de novembro de 2017

antigos, para registro

Ando desreconhecida do espelho.
acordo com o peso de todas as xícaras de café que já tomei
sobre o peito
dói, mas não faz mais efeito
sou apenas em caminho sem volta
sou apenas um andar unidirecional
com os olhos mortos grudados ao fim da rua
esse fim que não alcanço 
mas que não deixo de perseguir lentamente
quase que por inércia
ou por uma determinação desiludida
tão paciente quanto a certeza do final de tudo
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pensava que meninas grandes não caiam mais
que depois que se aprendia a pilotar
o avião não caia
nem o barco afundava
nem o cavalo mordia.
é um constante andar de salto alto
em um slackline
bêbada
à beira do precipício, 
essa tal de vida

Pensava que meninas grandes não caíam mais
mas a única coisa que mudou
é que agora eu passo o mercúrio
sozinha
e posso arrancar as casquinhas das feridas
se eu quiser.
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habito um apartamento pequeno
a apenas poucas quadras
do meu ex
não sei muito bem quem eu sou agora
sempre tive um tino reprimido para o marketing
sempre dei muita liberdade para os objetos que coabitam comigo
sempre gostei de dinossauros em miniatura
e acho que algum dia gostei bastante de sorvete de flocos
não sei o que espero da vida
nunca sonhei em ser mãe
nunca sonhei em ser reconhecida
meus sonhos sempre vem em ondas esparsas
lentas e largas
mas me deixam contaminada de pequenos puntos brilhantes
e esses duram uma eternidade finita
e depois somem de um dia para o outro
e eu nem percebo que se foram
 
até aparecer uma nova onda
e tudo começa de novo

mas nunca sei por quantas eternidades esse esquema irá durar
não tenho fé nas ondas
a previsibilidade sempre me soou como uma mentira dos fracos
por isso, talvez, não espere nada da vida
nem mesmo dos objetos
a liberdade dos seres animados e inanimados é sempre
um grande mistério para mim
mas acho que já estou me acostumando com isso

será que um dia vou gostar de torturantes saltos altos
será que um dia vou me mudar para Lisboa
será que um dia vou desejar pular de para-quedas
será que um dia as ondas vão me encontrar novamente

preciso alertá-las com urgência do meu novo endereço.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Setembro
Verão em Brasília
Ninguém diria.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Da saudade que não cansa

O relógio dela parou. Desistiu para sempre de Ser.

Ficava na sala, de frente pro mar, beijava a baía e não a deixava esquecer da dentadura, dos remédios, da sopa, dos netos, do whisky, das horas, dos dias, dos anos, do tempo, do tempo, do tempo, do tempo.
Por desgaste ou por descuido, o relógio estacionou entre as horas.

Sem ritmo, naufragou devagar em um dia qualquer entre o passado e o sonho, talvez em outubro de 1931, ou no dia das mães de 55, Afinal, quem saberá onde anda o tempo quando o primeiro ponteiro travado desfigura a inócua sanidade de um hospital, dando vida a todos aqueles livros de detetive de Graham Greene e Ian Fleming?

A polícia veio buscá-la.
Procurou seu chinelo e não encontrou.
Não conseguiu fugir.
Nunca mais voltou.
Deixou para trás uma pergunta:
Seria insanidade chamar os médicos de verdadeiros polícias da vida,
autoridades que vêm prender a alma a um corpo que não mais reconhece?
Eles responderam com haldol.
Eu respondo com poemas.

Eu dei corda e pensei
Que o relógio iria viver
Pra dizer a hora
De você chegar.
Não andou e eu chorei.
Dois ponteiros parados a rir:
"São à prova d'água"
Vinte e dois rubis

A que horas você vai chegar?

quinta-feira, 23 de maio de 2013

O que sobrou de Elena? - um breve ensaio sobre o indigesto

Elena afirma, de modo atemporal: se não for pela arte, não quero viver. E toma muitos remédios, se machuca, fotografa sua alma a partir de uma máquina de escrever e morre. A pergunta que fica é: Quem é Elena? De quem se fala quando se fala de Elena? A cineasta nos dá uma dica quando conta confundir sua trajetória com a da artista, quando percebe os olhos de pardal da irmã pousado nos dela. “Olhos profundos”. Essa é uma pista, mas está longe de ser uma resposta. O que sabemos de Elena? Que seu coração pesava 300 gramas. Que conheceu Coppola. Que era uma artista obsessiva. Que era uma máquina de produzir sonhos e uma catapulta de lançar o corpo no espaço em busca do desejo. Sabemos da delicadeza com que elevou objetos banais ao status de alicerces da constituição da irmã mais nova: o cachorro azul com olhos tristes, a concha, a voz. Podemos dizer muitas coisas da artista, da irmã, da filha. Mas o que surpreende é que mesmo saindo do cinema com a possibilidade desfilar uma lista de características de Elena, ela se traduz em algo distante de um personagem (literário, político ou social). Elena subtrai os personalismos. De uma história tão íntima, tão singular, o que fica é um sentimento muito mais amplo. Não é a toa que ao longo do filme eu esquecia “do nome da artista”. Perguntei-me inúmeras vezes porquê esquecer algo tão óbvio: o nome da moça é o mesmo nome do filme. Será?

Para mim, Elena virou substantivo abstrato. Porque Elena é a porosidade do corpo aberto ao mundo, aberto ao desejo e à dor de desejar. É o corpo que se desdobra de cima de si, que luta contra todos os extratos que o oprimem diariamente: vence o ar, os pêlos, a pele, os músculos, os fios enrolados por dentro, o sangue, os ossos, os órgãos. Elena é impessoal porque não é alguém – ela é muita gente, quando essa gente se encontra com o impossível de se ser o que se é. Com o inexorável da entrega à arte. Com a coragem de ir ao encontro dos sonhos que, com frequência, nos ofuscam. Elena trata de tudo aquilo que nos brilha, mas que tememos encontrar, covardia despreocupada e cotidiana que sustenta mercados, vidas insossas, que paralisa afetos. Elena sintetiza o esforço de busca, o movimento necessário, a entrega indelével. É a história de um corpo tão vivo, tão sensível ao mundo e a vida, que chega a se afetar a ponto de se embriagar de poesia. E aí o mundo vira uma ferida incurável, um mal-estar incapaz de abandonar o corpo. Vida indigesta, essa que me atravessa e se deposita em todas as partes de mim, sem apelos, sem receios. O corpo sofre, mas não cansa de se entregar: Elena é cativa do sonho da vida.

Na iminência da queda, Elena se esvai. Elena se foi. Será? O que sobrou de Elena para todos nós que passamos 82min em transe, girando junto ao seu corpo-estrela? A partir das mais diversas demonstrações de afeto sentidas, escutadas e vistas na sala do cinema, podemos dizer que o que sobrou de Elena foi os restos indigestos dessa experiência intempestiva que é a vida. Os mesmos restos indigestos que mataram Elena. Mas que também são os mesmos restos indigestos que impulsionaram Elena a lançar-se em uma das mais belas empreitadas humanas: a entrega à arte. Desse impossível que jamais se encerra, desse afeto sem lugar é que nascem os sonhos. Foi desse sentimento que nasceu um dos filmes-homenagem mais bonitos dos últimos tempos. Elena (o filme) toca as pessoas não apenas por sua história de perda, por sua beleza ou pela identificação com os que ficam. Elena emociona porque tem a potência de lembrar que todos nós somos um pouco Elenas cotidianas: nossos corpos, mesmo que soterrados pela velocidade, ainda são máquinas-carne pulsantes, desejantes de vida; ainda temos sonhos amarrotados em gavetas, ainda somos capazes de nos afetar com a beleza e o horror que o mundo nos traz. E de afetar. Por tudo isso Elena é uma declaração de amor à vida.


Fim da sessão. Do lado de lá da tela, resta matar Elena para que Elena não nos mate. Do lado de cá, resta abrir o corpo ao sonho, para que essa potência de Elena não morra.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

e lembrar que a vida também é feita de pedra,
e que a solidão é a cama dos sonhos.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

o reverso do lar

Cozinhar é uma arte perigosa;
as cebolas frequentemente dissimulam
lágrimas retidas
esquecidas dentro de antigos guardanapos
de papel;
descobrimos, com frequencia,
amarguras enclausuradas
em cascas de amêndoas torradas,
tentativas de suicídios nunca antes praticadas
com facas afiadas de cortar músculo,
gorduras suntuosas que, desmedidas,
anunciam um infarto - logo acima do coração
de uma galinha;
quase sempre nos deparamos
com a tendência de nos queimarmos,
mesmo quando dedicamos
tempo
afeto
e lemos as instruções com atenção;
sempre - sempre mesmo,
verificamos que tudo que é bom deixa um resto
indigesto
cobrindo os buracos
os ralos emitem cheiros ocres
e denunciam algo que foi doce.
Mas o pior mesmo são aquelas raras vezes
em que, atônitos,
nos descobrimos sem respostas
e até mesmo sem perguntas
frente ao vazio do desuso
de um destrinchador de aves.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

das coisas esquecidas pela casa

o amor que deixaste
dormindo
sobre a cômoda
entre as contas
te escapou numa tarde
de chuva
pelo bico da chaleira.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

das manhãs de porcelana trincada (quando pousam no nosso armário)

o café
caindo na xícara
recobre o branco
de negro.
escureço
onde teu líquido
não alcança o meu fundo
- e salienta
minhas ranhuras.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

primavera...

Farfalhando no meu ouvido
tuas palavras macias de folha de girassol.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Na vez terceira em que caiu
A dor foi tão intensa
que finalmente percebeu:
Não havia levantado do chão
desde a primeira.
Por que tão cru?
Por que tão cruel?

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Quando os homens apareceram
Era tarde, e eu não sabia.
O dia deitava em véspera
E a espera já não mais existia.
Como dizer a eles que uma mão
Já havia pousado sobre meu rosto,
Dedos que desenharam máscara de fogo?
Pena de pássaro se perdeu num sopro.
Os homens de frente, de costas,
Tomaram posições disformes.
Esperavam sem face pelo meu perdão
Mas meu perdão já havia sido decepado
Por dentes de tigres de nuvem
Muito antes de eles chegarem aqui.
Eu não sabia, eu estava cega para eles...
Não havia corpo penetrável,
Nem palavra de aluguel;
Havia apenas um grande mal entendido
Habitando meu peito.
Pela insistência e por desacato,
Já desistida de história e de bruma,
Dei a eles meus olhos de pedra.
Com mãos de lã de ovelha
Acarinharam as imagens perdidas;
Depois sentaram-se sobre minhas coxas
E comeram o que havia restado
Dos meus sonhos de prata.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

e mesmo sem sentir teu gosto,
sigo sentindo tuas mãos (firmes)
segurando as imagens no fundo dos meus olhos.

domingo, 24 de julho de 2011

Tar

Deitada no corpo giratório das palavras,
Com minhas mãos, quis parar a roda
De todo o mal que se deposita entre suspiros.
Pretendi encontrar o lugar
Onde o todo se realiza e há paz
- Há paz? -
Mas só encontrei morte nas tuas mãos
Em torno do meu pescoço.
Talvez a vida só desvele algum regalo
Quando os olhos de neon se fecham
E reina esse silêncio de reflexo apagado
No vidro da espera.

(A Tar es imposible llegar...)

domingo, 17 de julho de 2011

Era como debulhar o milho que as palavras escapavam - uma a uma, perdendo seu sentido de cadeia, perdendo sua união. Viravam pingos soltos e comestíveis, mas descontectados de uma espinha dorsal. Sentou em um banco grosseiro de madeira e observou as palavras debulhadas pelo chão: o amarelo ressecava a cada instante, e o que antes formava um sol coeso, perdia a convicção da iluminação do dia. Sabia que, antes, com a unidade, o milho se fazia manhã de sol, aro de fogo sobre a cabeça, sobre o corpo, uma liga reta de um branco leitoso que servia ao abraço das pequenas peças de ouro. Mas agora, tudo espedaçado, descobriu que os cabelos só serviam para fazer vento de si. Sem nenhuma idéia que a guiasse, permaneceu sentada no banco, mãos apoiadas no queixo, olhar de vidro fosco, tufo de esperança entre os dedos - todas as palavras suspensas em um suspiro pairavam feito aves negras contra o céu duro e esbranquiçado de um dia irreal e quente de verão.