quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Acidente?

Heliodora
Virgem da Lapa
Espera Feliz
Jacinto Olhos d'Água

Entre Folhas
Ferros, Palma, Caldas
Vazante

Passos
Pai Pedro Abre Campo
Fervedouro Descoberto
Tiros, Tombos, Planura
Águas Vermelhas
Dores de Campos



Acidente, documentário de Cao Guimarães e Pablo Lobato.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

do sangue

Espetava o dedo incessantemente na agulha, mas nunca com intensidade suficiente. A ponta áspera bailava entre as curvas do desenho de sua pele, rompendo levemente a camada mais superficial, depósito de tudo que se desfez do corpo. Pele moribunda unida ao corpo, sem vida, opaca, quase uma mortalha que encobre tudo que pulsa, e assim se desprende, se despede, se esfarela. Rompendo o envoltório mais barato, entrelaçado, sentia arrepios, medos, excitação. A costura surgia quase como uma memória de algum passado que não viveu, mas que ainda assim era seu, era de suas mulheres, de sua história. Quase como se aquela agulha tivesse passado toda uma eternidade costurando parentescos, tragédias, amores, bordando flores e cruzes por toda uma estrada com um início e um fim tão desconhecidos quanto os mistérios que encobrem os laços de sangue. Com a ponta da agulha desenhou na pele uma espiral, quase como ondas num lago de reflexos duvidosos, e um sentimento de conforto a invadiu. Certas coisas não se pode negar, o sangue era uma delas. Todos os erros, angústias e prazeres de tempos remotos corriam em suas veias. Sabores, medos, paixões, ambições, preconceitos. Poderia ser uma coisa qualquer, sem intenção nenhuma de estar aqui. Mas ao atribuir uma história ao líquido grosso que se arrastava pelo seu corpo, tornou-se algo além de solidão: tornou-se parte. Ao segurar a agulha com força, um sorriso bobo invadiu seu rosto, e a nostalgia de toda uma vida eterna lhe ardeu. Apertou a agulha com força contra o dedo, rompendo tudo que a prendia a um fim, e ao alcançar esse feito, escorreu-lhe a força de uma vida por entre os sulcos de sua mão. Nunca mais estaria só.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

sobre ser mulher e líquida.

Aflição de ser eu e não ser outra.
Aflição de não ser, amor, aquela
Que muitas filhas te deu, casou donzela
E à noite se prepara e se adivinha,
Objeto de amor, atenta e bela.

Aflição de não ser a grande ilha
Que te retém e não te desespera.
(A noite como fera se avizinha)

Aflição de ser água em meio à terra
E ter a face conturbada e móvel.
E a um só tempo múltipla e imóvel.

Não saber se se ausenta ou se te espera
Aflição de te amar, se te comove.
E sendo água, amor, querer ser terra.


Hilda Hilst.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2008

Angústia

De repente, um buraco vazio a frente. Procurando em volta não encontrava nada em que pudesse se segurar: o espaço estava tomado de idéias, de palavras, de coisas médias e conflitantes. Fumaça. Pedaços de cortiça tomados por traças. Farelos dos ossos que se decompunham. Azedume de toda uma vida visceral regurgitada. Deixava fósforos queimarem lentamente, uma caixa, duas... finda a luz e em canto algum dessa morada criou-se paz ou alguma ilusão parecida. Tic tac, vertigem, medo. Um passo e um abismo infinito, toda a atração da queda e o inferno lá embaixo, queimando lentamente tudo que permite uma vida ridícula. Lá embaixo, tudo de mais vital pulsava. Perturbação, coração palpitante. Cair no abismo... De repente, não mais do que isso, juntou todo seu pó, todos seus vícios e sua indiferença, se agarrou com toda a força que tinha a um pedaço de papel, e assim conseguiu se enganar por mais algumas semanas. Sedada.

redenção

Me reconciliei comigo mesma.

De passos em passos, largos e flutuantes, me despeço dos velhos baús de pesos cordiais. Atravesso a porta: Adeus a tudo aquilo que fiz. Jogo todos os erros num navio que naufraga;
permito que meus medos afundem com as minhas culpas, para assim me reencontrar comigo mesma. Atiro flores no caixão, me reconcilio com meu presente carregando versos que não dizem nada, que não ouvem nada, que de nada me servem. Quando quero afogar tudo que está fora de mim, prendo a respiração e pulo do telhado da casa: redenção.

Efemeridade.

Todo momento de desgraça ou de prazer não passa de uma eternidade vivida numa ampulheta com final ao alcance dos dedos. Na passagem repentina de uma centena de nuvens, moldamos e remoldamos algo que não nos pertence: ser. Na estabilidade desencontramos a mobilidade a qual viver nos remete: condição humana do movimento incessante. De nada adianta tentar aprisionar bons momentos, como se a felicidade fosse algo palpável, ou se o prazer pudesse durar mais do que um orgasmo. Ou se desesperar e angustiar como se a dor fosse infinita. Nada é. Tudo está. Estar: é ser em um dado momento. Multiplicando seres, numa constante mudança, algo que só alcança alguma expressão em algo plástico, ou cênico. Palavras são estáticas, e todo movimento que tento tirar delas se resume a tentativas vãs de alguém que visa autenticidade, mas que não passa de um qualquer sentimental aprisionado à ordem.

fim de um caso qualquer

Silencio o grito.
Porque tudo se desfez tão leve
ruído, tempestade
Um redemoinho dentro do que sou
Tudo se foi.
Porque as coisas sempre vão
Nada há de ficar
O tempo leva tudo que pode
Levou o que fui
O que fomos
O que seria
Levou meus sonhos
Meus medos
E trouxe novos.

"deixe em paz meu coração, que ele é um pote até aqui de mágoa..."

Jasão: "Você é viagem sem volta, Joana. Agora eu vou contar para você, sem rancor, sem sacanagem porque é que eu tinha que te abandonar. Você tem uma ânsia que me esgota. Ninguém pode viver tendo que se empenhar até o limite de suas forças, sempre, para fazer qualquer coisa. É no amor, é no trabalho, é na conversa, você me exigia inteiro, intenso, pra tudo, caralho... Tinha que olhar pro céu pra dar bom dia. Tinha que incendiar a cada abraço, tinha que calcular cada pequeno detalhe, cada gesto, cada passo. Que um cafezinho pode ser veneno e um copo d'agua, copo de aguarrás.
Só que Joana, a vida também é jogo, é samba, é piada, é risada, é paz. Pra você não Joana, você é fogo. Está sempre atiçando essa fogueira, está sempre debruçada pro fundo do poço, na quina da ribanceira, sempre na véspera do fim do mundo. Pra você, não há pausa, nada é lento. Pra você é tudo hoje, agora e já. Tudo é tudo, não há esquecimento, não há descanso, nem morte há. Pra você não existe dia santo e cada segundo parece eterno.
Foi por isso mesmo, que te amei tanto, porque, Joana, você é um inferno."


da peça Gota d'Água.