segunda-feira, 24 de março de 2008

Companhia

Bem-vinda, minha amiga, a esta noite
Não esperava te ver tão cedo
Ou tão tarde.
Puxe uma cadeira, sente-se.
Me ofereça um cigarro e toda a desordem possível.
Agora que te vejo, não me sinto mais tão inquieta
Quando apenas sentia tua presença, tremia.
Mas os tempos já são outros, velha amiga
E hoje tua presença ainda me é incômoda
Porém cordial
Quase como duas velhas senhoras
Se encontrando para lamentar seus mortos
E deixar transparecer pelo silêncio duplo
O inferno da angústia
E a resignação diante das cartas que tiramos
Sem ver futuro.
Não te culpo por me acompanhar a tanto tempo
Creio que te mantive presa aos meus medos
E delírios
Por todos esses anos. Essa longa estrada.
E te temi e desejei tão intensamente...
Não creio que foste uma paixão; creio que
Sempre esperei isso de ti: aceitação.
Me olha nos olhos e me vês
Gasta
Como gasto está o solado de tuas botas
Com as quais peregrinou por tantas vidas
Fazendo visitas insólitas.
Creio que te repudiam quando fracos
Que te apedrejam quando fortes
Mas eu não – abraço todo o desgaste
Que me trazes
Pois reconheço em ti a única amiga
Leal
Que já tive. Nunca me abandonaste;
No teu presente infernal reside a única
Certeza
da minha trajetória.

domingo, 23 de março de 2008

tormento onírico

Queria transportar todas as imagens que me perturbam
Os fantasmas que me rondam no escuro
De minhas idéias.
Queria expurgar tudo que me resta
De larvas e livros
Asfalto quente
Banco na beira do rio
Todo o teatro e o trago
Tudo que corre desesperadamente
Pelos olhos de dentro, ao passar pela vida de fora.
Queria dar adeus a tudo de valor que tenho –
Essas imagens oníricas
De todas as vidas que não tive
De todo o suor que se faz mar, que se faz ar
Que se fez sombra
Sobre meus dias de hoje, e que me persegue
Com fragmentos de prédios, de praças,
De tudo que me cruza pelas ruas conhecidas
Nuvens de toda fumaça que deixei no mundo
Enquanto meus pulmões alçavam vôo no concreto.

sobre ser mulher e líquida II

Se te pareço noturna e imperfeita
Olha-me de novo. Porque esta noite
Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.
E era como se água
desejasse

Escapar de sua casa que é o rio
E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há um tempo
Entendo que sou terra. Há tanto tempo
Espero
Que o teu corpo de água mais fraterno
Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.
E mais atento.



Hilda Hilst.

sábado, 15 de março de 2008

Palavreiro

Desculpa.
Cinzeiros transbordam enquanto eu tento... Te digo, sim, te digo! Te falo sem pronunciar uma só palavra. As palavras doem, mesmo sem significar Absolutamente nada. Sons perdidos por aí. Nossa comunicação se dá na fração de segundos entre uma palavra e outra. São esses segundos silenciosos que permitem que nossos sentimentos rompam essa barreira de ar construída pelas palavras e toquem a alma do outro. Aí sim, somos compreendidos. As melhores conversas acontecem quando estamos em silêncio. Compreende? Compreende que nada aqui tem um objetivo ou significado? E que, ainda assim, eu tento lhe falar? Escuta! Escuta, porque eu preciso... preciso que me escutes. Só. Mas preciso que me escutes tanto, tanto, que eu nem precise falar. O que vem ao meu peito não tem palavras. Palavras não bastam, palavras são vãs, e mesmo assim tento lhe dizer tudo, tudo isso e tudo mais, tudo e mais um pouco: tento lhe dizer nada. Tento, tento, juro que tento! De repente não percebes, mas tento com todo meu espírito: estou sangrando. Sangrando de tanto tentar, e tudo me dói, é tanto, tanto esforço... Mas sei que não é em vão. Nada é em vão. Palavras são vãs, mas eu vou além delas, elas nos afastam, elas nos travam, elas nos limitam a tão, tão pouco... Como se todo esse mosaico de sentimentos inomináveis, colagens de sensações e antagonismos, de visões e intuições, toda essa riqueza de tudo que nos constitui pudesse se resumir a uma convenção pobre, uma convenção simplista. Palavras são uma ofensa aos sentimentos! Palavras são uma ofensa a um artista... ou a um sensível. Palavras ofendem, e eu tento falar, tento... tento tanto! Mas acho que desaprendestes a ouvir de outro modo. A sentir, sem que precisem lhe descrever tudo, tudo... O que não pode ser interpretado, analisado, fichado, resumido a uma folha de revista, é valorizado? O que não cabe em palavras não é levado a sério, embora seja tudo de mais sério e verdadeiro que possa existir vindo de um ser humano. Acabamos vivendo nesse mundo de mal entendidos, de mal entendidos e de excessos de “bem entendidos”, abusos de explicações, tudo é explicado, tudo é repetido, tudo é decorado. Não há mais espaço para criar, pois existem moldes, ensinados em palavras, moldes passados de boca em boca, sem saliva, sem sangue ou cuspe. Palavras limitadoras, que criam deficientes visuais com visão, surdos com ótimos ouvidos e tímpanos, mudos com voz, paralíticos de expressão... Eu preciso, preciso lhe falar. Eu sinto... sinto tanto. E as palavras me cercam, me golpeiam, me enjaulam. Me sinto amarrada, presa, distante, vazia. Existem mais de duzentas mil palavras na nossa língua. E nenhuma compreensão. Compreende? Ninguém compreende a palavra, porque a palavra é ordem. Criada para ordenar sentimentos, limitando tudo que poderíamos ser e sentir e criar, se não houvesse a necessidade de analisar, catalogar, expor. Exponho, a partir daqui, tudo que sinto e preciso, preciso urgentemente dizer. Que o silêncio fale por mim, que nossa fração de segundos fale muito mais alto do que o som de qualquer palavra que possa tentar nos enquadrar. A partir de agora, eis aqui tudo, tudo que sempre quis dizer. Não espero que compreendas; espero apenas que sintas.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Langor

Os dias passavam, luz e caravelas, um mar de gosto amargo. Café preto e forte, numa tentativa vã de reanimar o corpo, já que a alma já cedia aos desgastes da maré. Nunca entendera o que fazia, porquê fazia, e se fazia de verdade. A vida era um balanço lento, confundido com tranqüilidade, mas era mais de uma coisa acinzentada e vaga, sem uma espinha dorsal. Uma vida inteira gelatinosa, rija por fora, negativamente fluida por dentro. Perdia-se entre devaneios em letras, em bares ou canções, em televisões luminosas, quem entendia a televisão? E todos adoravam. Exploração visual, costumava chorar por pena dos seus olhos, que viam em todos os cantos da cidade o excesso de tudo aquilo que nunca teve dentro. Caleidoscópios, carnavais, floreiras. Azul ciano, luz de neon, tijolinhos, sapatos de boneca, flores, flores, flores. Onde as cores se depositavam apenas na superfície, tudo se tornava cinza, metálico e gélido por dentro. Vivia uma quarta-feira de cinzas eterna, que a cercava por todos os lados. E talvez nem se importasse muito, que diferença faria se desse importância? O mundo seguiria um bloco de concreto afundando lentamente no oceano. Protegida por uma capa preta, como essas de gabardine, caminhava na chuva, sem senti-la. Nada penetrava nela. E nada saia dela também. Todo o caos que existe dentro não tinha permissão para sair, vagava por entre as bordas de sua persona com indiferença lastimável. Poderia ter sido uma explosão de tudo o mais que não se sabe, mas não foi. Com a alma vedada por tudo aquilo que pensava que era ou deveria ser, morreu antes mesmo de ter nascido, como um bloco inócuo de cimento e cotidiano.
Escrever esgota todos os problemas e a vida
de dentro.

Esperma no papel.

do narcisismo absurdo e sincero

felicidade passada:

Fui dormir muito feliz ontem. Me sentindo amada. Poderia morrer naquele momento, desconhecendo a verdade, a ansiedade, os medos e os fatos. Poderia morrer feliz, com a esperança da perpetuação de todos os amores, com o sentimento de completude que se espalha e toma conta de todo o universo. O mundo é bom, e por ser tão amada, posso morrer - não preciso de ninguém mais.

segunda-feira, 3 de março de 2008

Jards Macalé

Estou Cansado e você também.
Vou sair sem abrir a porta
E não voltar nunca mais.
Me desculpe a paz que roubei,
E o futuro esperado que não dei.
É impossível levar um barco sem temporais
E suportar a vida como um momento além do cais
Que passa ao largo do nosso corpo.
Não quero ficar dando Adeus às coisas passando
Eu quero é passar com elas
E não deixar nada mais do que as cinzas de um cigarro...
E a marca de um abraço no seu corpo.
Não sou eu quem vai ficar no porto chorando, não.
Lamentando o Eterno Movimento dos barcos.