Elena afirma, de modo atemporal:
se não for pela arte, não quero viver. E toma muitos remédios, se machuca,
fotografa sua alma a partir de uma máquina de escrever e morre. A pergunta que
fica é: Quem é Elena? De quem se fala quando se fala de Elena? A cineasta nos
dá uma dica quando conta confundir sua trajetória com a da artista, quando
percebe os olhos de pardal da irmã pousado nos dela. “Olhos profundos”. Essa é
uma pista, mas está longe de ser uma resposta. O que sabemos de Elena? Que seu
coração pesava 300 gramas. Que conheceu Coppola. Que era uma artista obsessiva.
Que era uma máquina de produzir sonhos e uma catapulta de lançar o corpo no
espaço em busca do desejo. Sabemos da delicadeza com que elevou objetos banais
ao status de alicerces da constituição da irmã mais nova: o cachorro azul com
olhos tristes, a concha, a voz. Podemos dizer muitas coisas da artista, da
irmã, da filha. Mas o que surpreende é que mesmo saindo do cinema com a
possibilidade desfilar uma lista de características de Elena, ela se traduz em
algo distante de um personagem (literário, político ou social). Elena subtrai
os personalismos. De uma história tão íntima, tão singular, o que fica é um
sentimento muito mais amplo. Não é a toa que ao longo do filme eu esquecia “do
nome da artista”. Perguntei-me inúmeras vezes porquê esquecer algo tão óbvio: o
nome da moça é o mesmo nome do filme. Será?
Para mim, Elena virou substantivo
abstrato. Porque Elena é a porosidade do corpo aberto ao mundo, aberto ao
desejo e à dor de desejar. É o corpo que se desdobra de cima de si, que luta
contra todos os extratos que o oprimem diariamente: vence o ar, os pêlos, a
pele, os músculos, os fios enrolados por dentro, o sangue, os ossos, os órgãos.
Elena é impessoal porque não é alguém – ela é muita gente, quando essa gente se
encontra com o impossível de se ser o que se é. Com o inexorável da entrega à
arte. Com a coragem de ir ao encontro dos sonhos que, com frequência, nos
ofuscam. Elena trata de tudo aquilo que nos brilha, mas que tememos encontrar,
covardia despreocupada e cotidiana que sustenta mercados, vidas insossas, que
paralisa afetos. Elena sintetiza o esforço de busca, o movimento necessário, a
entrega indelével. É a história de um corpo tão vivo, tão sensível ao mundo e a
vida, que chega a se afetar a ponto de se embriagar de poesia. E aí o mundo
vira uma ferida incurável, um mal-estar incapaz de abandonar o
corpo. Vida indigesta, essa que me atravessa e se deposita em todas as partes
de mim, sem apelos, sem receios. O corpo sofre, mas não cansa de se entregar: Elena é cativa do sonho da vida.
Na iminência da queda, Elena se
esvai. Elena se foi. Será? O que sobrou de Elena para todos nós que passamos 82min
em transe, girando junto ao seu corpo-estrela? A partir das mais diversas
demonstrações de afeto sentidas, escutadas e vistas na sala do cinema, podemos
dizer que o que sobrou de Elena foi os restos indigestos dessa experiência
intempestiva que é a vida. Os mesmos restos indigestos que mataram Elena. Mas
que também são os mesmos restos indigestos que impulsionaram Elena a lançar-se
em uma das mais belas empreitadas humanas: a entrega à arte. Desse impossível que jamais se encerra, desse afeto sem lugar é que nascem os
sonhos. Foi desse sentimento que nasceu um dos filmes-homenagem mais bonitos
dos últimos tempos. Elena (o filme) toca as pessoas não apenas por sua
história de perda, por sua beleza ou pela identificação com os que ficam. Elena emociona porque tem a
potência de lembrar que todos nós somos um pouco Elenas cotidianas: nossos
corpos, mesmo que soterrados pela velocidade, ainda são máquinas-carne
pulsantes, desejantes de vida; ainda temos sonhos amarrotados em gavetas, ainda
somos capazes de nos afetar com a beleza e o horror que o mundo nos traz. E de
afetar. Por tudo isso Elena é uma declaração de amor à vida.
Fim da sessão. Do lado de lá da tela, resta
matar Elena para que Elena não nos mate. Do lado de cá, resta abrir
o corpo ao sonho, para que essa potência de Elena não morra.
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