sábado, 19 de julho de 2008

Carta para o Inconcluso

Não sei se, depois de todo esse tempo, ainda sinto raiva de ti. As coisas mudaram. A gente mesmo queria que elas mudassem, e elas, finalmente, mudaram. As linhas se seguiram e se distanciaram em perspectiva. A gente sempre soube que precisava viver outras coisas, mas não sabia aonde isso chegaria. Que nos afastaria tanto. Que nos afastaria tanto que então permaneceríamos juntos lá no infinito, de um modo que nunca teríamos imaginado. Não sei aplicar julgamentos a essas coisas, bom? Ruim? Acho que esse é o tipo de coisa que não faz diferença. O que importa é a ordem dos acontecimentos e a perpetuação das coisas. Desde que tudo aconteceu, ou melhor, desaconteceu, olhei pra trás e comecei a pensar que existem dois tipos de relacionamento (dentre os de amor mais habituais): os que são tão bem vividos que se esgotam em possibilidades de sentimento, e os que mesmo marcando a carne com a mão, marcando a alma com palavras, batendo com as palavras e acariciando com os dentes, nunca se esgota o sentimento. É algo de uma matéria vaga que escapa às mãos. Não é apreensível, não é observável e, principalmente, não é nomeável. Meus estudos me marcam muito, como tu sabes, e por isso acredito que o que não é nomeável é o mais difícil. Já gastei tantas folhas de papel, tanta tinta, tanto tempo na frente de uma tela iluminada, espancando o teclado com os únicos dois dedos com que sei digitar e parece que ainda não alcancei o ponto catártico de toda essa coisa. Não consigo pôr em palavras, e isso me angustia de um modo brutal. Mas me angustia só quando penso nisso, o que não costuma acontecer, aliás, quase nunca acontece. O que me trouxe aqui hoje foi a impossibilidade de afastar um broto de pensamento: estava pegando livros na biblioteca e, sem entender porquê, peguei um de um autor que tu gostas. Não sei o que aquele livro fazia entre Proust e Ítalo Calvino, acredito que não pertença àquele local. E esse deslocamento, essa falta de sentido, me chamou atenção. Saltou aos olhos e, sem pensar muito, retirei ele. Eu sabia que não era uma boa idéia, mas o que posso fazer? Às vezes as pessoas necessitam espetar o dedo com agulhas para ver se ainda possuem sangue sob a pele. E não tive surpresa alguma ao ver que, sim, eu ainda tenho sangue, que não deixei todo o líquido embriagante escorrer. Por que seguro ele em mim ainda?
Pois eu estava em casa à noite, entre a Clarice e a Virginia, tentando me embebedar da vida ao avesso, quando o tal do livro começou a me olhar. Eu sabia o que ia acontecer se eu o abrisse, eu sou meio impulsiva, ou eu agarro as coisas e as sugo, ou eu abro mão de um modo aparentemente muito simples. Tu sabes. Pois eu suguei. Suguei de um modo que nunca imaginei sugar, me senti agarrada a um naco do passado, me senti reavivando pedaços de seres mortos. Mas senti, e esse foi o principal. O livro me trouxe toda a necessidade de falar contigo, e o faço através destas letras. Não existem palavras para nós. Existem essas coisas emaranhadas, tecidas com a mão pesada de algo bruto e mortal. Esse algo é o amor. Foi amor, eu sei. E isso me tranqüiliza e me perturba, como o amor pode ser tão cruel? O amor que mata, o amor que nos matou de modo impiedoso, que nos executou de forma triste, deixando uns farelos de idéias que não se encaixam em lugar algum. E que vamos sempre carregar, porque não pertencem a nada que tenha forma ou seja acolhedor. O amor é cruel? Acredito que não se possa julgar desse modo. Bom? Ruim? Não faz diferença. O que importa é que o nosso amor sempre foi um objeto pontiagudo. Daqueles que usamos para nos cortar e ter certeza de que ainda estamos vivos, quando tudo em volta parece não fazer mais sentido.