quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Langor

Os dias passavam, luz e caravelas, um mar de gosto amargo. Café preto e forte, numa tentativa vã de reanimar o corpo, já que a alma já cedia aos desgastes da maré. Nunca entendera o que fazia, porquê fazia, e se fazia de verdade. A vida era um balanço lento, confundido com tranqüilidade, mas era mais de uma coisa acinzentada e vaga, sem uma espinha dorsal. Uma vida inteira gelatinosa, rija por fora, negativamente fluida por dentro. Perdia-se entre devaneios em letras, em bares ou canções, em televisões luminosas, quem entendia a televisão? E todos adoravam. Exploração visual, costumava chorar por pena dos seus olhos, que viam em todos os cantos da cidade o excesso de tudo aquilo que nunca teve dentro. Caleidoscópios, carnavais, floreiras. Azul ciano, luz de neon, tijolinhos, sapatos de boneca, flores, flores, flores. Onde as cores se depositavam apenas na superfície, tudo se tornava cinza, metálico e gélido por dentro. Vivia uma quarta-feira de cinzas eterna, que a cercava por todos os lados. E talvez nem se importasse muito, que diferença faria se desse importância? O mundo seguiria um bloco de concreto afundando lentamente no oceano. Protegida por uma capa preta, como essas de gabardine, caminhava na chuva, sem senti-la. Nada penetrava nela. E nada saia dela também. Todo o caos que existe dentro não tinha permissão para sair, vagava por entre as bordas de sua persona com indiferença lastimável. Poderia ter sido uma explosão de tudo o mais que não se sabe, mas não foi. Com a alma vedada por tudo aquilo que pensava que era ou deveria ser, morreu antes mesmo de ter nascido, como um bloco inócuo de cimento e cotidiano.

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