sábado, 5 de dezembro de 2009

descostura?

posso sentir os fios passarem pela minha pele, devagar. penso que as costuras devem doer, os tais pontos, mas a descostura também dói, queimando a carne no deslizar dos cordões. sempre me senti desfiada, num rasgar constante, e por isso me penso em descostura: desabotôo os pulsos, esvazio as cavidades venosas de sangue, as espirituais de poesia. tudo se esvai na falta de um bom fio para conduzir os tecidos, articular as partes. e me vejo, então, como um tecido frágil, de difícil adesão e fácil dissolução: me desfaço em agulhas diversas; as muito suaves não me unem as partes. as mais rudes me esburacam as estampas, forçando um abandono no abraço entre minhas fibras. sou assim, difícil de costurar. de prender, de ter um sentido atribuído aos meus fragmentos e laços. sempre andei desarticulada, meio capenga, meio torta das costuras mal feitas das mãos da vida. coleciono todas as feridas de todos os bordados marcados que, em dado momento, tive que desfazer; mas também coleciono feridas dos bordados que nunca se concretizaram por falta de mão. tudo, tudo marca um tecido delicado, até a aspereza das mãos, a intensidade dos toques, os suspiros que se pregam enviezados no forro. tudo marca, mas nada prende. alguns alfinetes, talvez, em alguns momentos da vida, tenham dado uma forma ao que se arrasta por entre corpos. talvez os corpos mesmo tenham tentado me enformar, e por alguns segundos eu tenha aderido. mas sempre caí. sou esse tecido molenga, de todas as formas - e de nenhuma. devido a essa circunstância, decidi me dedicar à árdua tarefa de sempre me descosturar - quando longe das mãos bordandes. tal qual uma penélope na esperança de seu ulisses, sempre estive assim, em constante desbordar. e assim fui até que um dia, em um sonho, tu me apareceu sem alfinetes, sem certezas... e com botões. hoje já não sei como me pensar sem tua costura. hoje não me vejo mais sem nossas cordas.

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